O Quarto de Carolina: uma análise da obra

“Quando pessoas negras estão reivindicando o direito a ter voz, elas estão reivindicando o direito à própria vida” (RIBEIRO, Djamila. 2017, L.313)

A obra Quarto de despejo: diário de uma favelada[1] foi escrita por Carolina Maria de Jesus, cujo início do relato se deu em 1955, sendo publicada em 1960. Neste ano a obra completa 60 anos desde a sua publicação, no entanto ainda é pouco conhecida pela maior parte dos brasileiros. Com a exigência em alguns processos de vestibular pelo Brasil, começa a ganhar mais visibilidade entre os jovens.

Carolina Maria de Jesus é uma mulher negra, semianalfabeta e pobre que sai de Sacramento, Minas Gerais, e vai para São Paulo em busca de condições melhor de vida, assim como boa parte da população naquele período. A grande metrópole era o destino de nordestinos e outras pessoas que ansiavam por emprego.

A obra em análise neste texto teve alguns trechos publicados em jornais da época como provocação e chamada a um certo público que posteriormente viriam a comprar seus exemplares. A escritora foi descoberta por Audálio Dantas (falecido em 2019) quando o jornalista estava buscando um furo de reportagem que teria como tema a favela. Naquele momento esbarrou com Carolina que apresentou-lhe os seus diários.

Inicio aqui uma análise da obra, cujo texto teve seu início com a passagem do aniversário de sua filha mais nova, Vera Eunice, mais precisamente no dia 15 de julho de 1955. Este diagnóstico tem como objetivo identificar os processos camaleônicos de resistência do negro e de promover a escrita de Carolina como possível e necessária a todo aquele que deseja conhecer as particularidades de uma literatura precursora, que por meio da sua ousadia de escrita para a época foi possível ao público ter acesso à vida da escritora dentro de uma favela nos anos de 1960; resistindo ao meio dentro de uma sociedade que invisibilizava os negros, os pobres e as mulheres, triplicando um processo de opressão. Por esse motivo procura-se a partir deste ponto proporcionar ao leitor olhares outros sobre a obra.

Ainda que sua obra seja um diário pessoal, é seguro pensá-lo como uma autobiografia, visto que desde o início a escritora deseja ter sua vida exposta. Ao pensar nesse gênero textual, é oportuno apontar que não há autobiografias sem ficção, mesmo que haja o relato da verdade, os elementos ficcionais fluem.

Para além desses outros e nas possíveis interpretações de si, também fez questão de incluir detalhes sobre o espaço em que vivia, a favela do Canindé, um local de produção o qual ela afirmava ser o lugar onde se colocava tudo aquilo que se desejava esconder da sociedade.  Na intenção de refletir sobre isso, Carolina de Jesus aborda sobre questões políticas, sociais, bem como as reflexões intimistas sobre a condição de miséria e pobreza imposta a ela e aos moradores do Canindé. Em Quarto de despejo há uma narrativa que mescla linguagem literária com a informalidade de um relato autobiográfico, temos um autor, um narrador e uma personagem que apresentam a mesma assinatura, já anunciados no subtítulo do livro (LEJEUNE, 2014), pontos esses importantes para a análise de uma obra autobiográfica

Outra questão pertinente à observação de um diário se faz por meio da linguagem nele apresentada, essa nem sempre apresenta uma gramática fiel à norma padrão, especialmente por ser um tipo de texto que não leve em conta os múltiplos leitores, pelo contrário, trata-se de contar sobre si para si.

O diário íntimo é um fenômeno social que parece ter proliferado no mesmo momento em que se tornou um gênero literário. Esse escrito, tido como secreto, tem como destinatário o seu próprio autor, e não está destinado necessariamente a ser relido. O fato de ser escrito na maioria das vezes por mulheres ─ por muito tempo, mesmo nas classes altas, proibidas de escrever e destinadas apenas a serem leitoras, piedosas ou apaixonadas ─ ou por adolescentes sem status, submetidas à tutela paterna, como sua mãe à conjugal, indica que papel social desempenhou na história esse lugar em que se construiu, na continuidade das páginas acumuladas, um reconhecimento de si que as sociabilidades não fornecem ou não conseguem mais fornecer (CHARTIER & HÉRBRAD apud CUNHA, Maria Teresa 2000, p.43).

O diferencial de Carolina é que ela, apesar de escrever um diário pessoal, também desejava torná-lo livro. Desse modo é que encontramos nessa trama alguns fios emaranhados que se misturam entre uma linguagem mais informal com alguns vestígios de poeticidade das figuras de linguagem, artifício utilizado pelos bons e conceituados escritores da época. Entre as peculiaridades da obra de Carolina atrelada à vida pessoal da escritora, que tinha apenas dois anos de vida escolar, é que a poetisa da favela estaria “autorizada” a falar, diferentemente do que acontecia naquele contexto de escrita, ou seja, um porta voz escrevia contando sobre a vida de negros, pobres, pois, além de subestimar suas capacidades para tal feito, poucos negros eram escolarizados, motivo a mais para negar-lhes a autoria, uma vez que só estaria autorizado aquele que manejasse muito bem o uso da língua.

Muito mais que uma mescla de gêneros textuais, Carolina quebra de início alguns conceitos da época com a sua escrita, ademais ao abrir sua obra temos diante de nós um diário pessoal escrito por uma mulher negra e semianalfabeta. Todavia, além de dominar as letras de maneira adequada para a escrita de seu diário, foi capaz de dominar alguns recursos poéticos, tal como se pode constatar pela presença de algumas metáforas, as quais enriquecem seu texto ao narrar sobre a fome, a miséria e os inúmeros preconceitos àqueles que na favela do Canindé dividiam com ela e seus filhos a experiência da pobreza.

A base do diário é a data. O primeiro gesto do diarista é anotá-lo acima do que vai escrever. “Quarta-feira, 2 de março de 1898” […] um diário sem data, a rigor, não passa de uma simples caderneta. A datação pode ser mais ou menos precisa ou espaçada, mas é capital (LEJEUNE, 2014, p. 300).

Sem a presença de vocativos, mas fiel à presença de datas, Carolina permite ao leitor uma localização não só no espaço, como também no tempo. Ainda que não houvesse uma obrigação diária de escrita, a autora é fiel à marcação de tempo/data do seu relato. Carolina não escrevia diariamente como uma obrigação, muitas vezes, os afazeres de mãe e catadora de papel a impedia de uma continuidade de fatos.

No entanto, ela poderia escrever em qualquer horário, até de madrugada, como sua filha mesmo declarou, ela dormia com um caderno e lápis embaixo do travesseiro para que assim que as ideias surgissem, ou o sono escapasse, ela então escreveria, aproveitando o seu pouco tempo livre para a escrita do livro.

Sobre o enredo, estes eram descontínuos, os conflitos eram distintos, não tinham uma continuidade, ou seja, quando retomava a escrita não partia de onde ela teria finalizado no último dia em que esteve com papel e lápis à mão. Se havia algo para ser dito, ela o fazia e terminava; no outro dia, sempre haveria um motivo a mais para continuar sua narrativa.  No entanto é oportuno dizer que a fome sempre retornava à trama, como um anti-herói de uma narrativa.

Parte desses breves enredos narrativos girava em torno das brigas na favela; das queixas sobre seus vizinhos – com quem não tinha um bom relacionamento; da sua luta em busca de alimento para a sua fome e a de seus três filhos; da política e as reclamações que fazia aos políticos; do preço dos gêneros alimentícios; da escrita – sim, ela falava sobre o ato de escrever e de fazer dessa escrita a voz de quem estava na mesma condição de pobreza que a sua.

É possível, dessa forma, perceber seu gosto pela escrita e leitura como fruição, uma prática que assumia como aquela que lhe dava muita satisfação; quando podia, deixava de ir trabalhar para escrever. Por conseguinte, alimentava entre os vizinhos uma inveja, porque era entre eles uma das poucas, senão a única, que era alfabetizada.

Eu hoje estou triste. Estou nervosa. Não sei se choro ou saio correndo sem parar até cair inconciente. É que hoje amanheceu chovendo. E eu não saí para arranjar dinheiro. Passei o dia escrevendo. Sobrou macarrão, eu vou esquentar para os meninos (JESUS, 2012, p.42, grifo meu).

Na sequência, faz-se oportuno prosseguir com aquilo que fora proposto neste texto, a análise narrativa, para tanto é prudente tomar um dos elementos essenciais para a coerência dos fatos narrados, a localização do tempo e do espaço. Compromisso esse que assume não só um escritor de diários, como também o de narrativas. A autora do Canindé parte de um único espaço, a favela e seu entorno; no entanto quando aborda conflitos externos ao espaço principal, nunca deixa de situar o leitor.

O diário é um vestígio: quase sempre uma escritura manuscrita, pela própria pessoa, com tudo o que a grafia tem de individualizante. É um vestígio com suporte próprio: cadernos recebidos de presente ou escolhidos, folhas soltas furtadas ao uso escolar. Às vezes, o vestígio escrito vem acompanhado de outros vestígios, flores, objetos, sinais diversos arrancados à vida quotidiana e transformados em relíquias, ou desenhos e grafismos (LEJEUNE, 2014, p.301).

Não havia flores, nem papéis de balas e chocolates recebidos de alguém. Todavia as marcas, por vezes, eram das manchas dos cadernos retirados do lixo, ou daquelas deixadas pelas enchentes sofridas no Canindé[2].

A obra nasceu em meio às negativas, negação de moradia, de saúde, de alimentação, a qual nunca recebeu por imposição de uma sociedade que selecionava e excluía. Ainda assim, ela por meio da ‘leitura de mundo’[3] crítica trouxe elementos importantes para seu diário. Para além da capacidade leitora que tinha, a diversidade de gêneros a que teve acesso permitiu-lhe compreender alguns recursos literários capazes de enriquecer seus textos. Por esse motivo, temos diante de nós uma autora e narradora que escreve um texto com suaves elementos literários, bem como apresenta uma mescla de linguagem, digna dos bons e conceituados escritores da época, o que permite a ela ornamentar seu texto nesse tecido literário.

A poetisa da favela, como ela mesma fez questão de se intitular, não apresenta uma narrativa cuja luta pela sobrevivência fora o único conflito deste enredo, Carolina mostra os vários motivos em que, para além do prato vazio, a falta de humanidade é um dos excessos encontrados neste percurso de resistência que foi sua vida. O anti-herói do quarto de despejo, a fome tinha um concorrente, a crueldade, tal qual a que ocorreu com a vizinha da escritora quando ansiosa à espera do alimento encontra a desumanização de si e dos seus.

Desumanidade essa que ganha outros tempos, outros cenários, não mais ocorrem nas senzalas e casas grandes, todavia se repete até os dias de hoje, é a perversidade dos homens vestida de bondade. Na intenção de digerir todo o mal sofrido, Carolina nos contempla com a poesia quando se refere ao coração duro dos políticos.

Prosseguindo o estudo desta obra é pertinente trazer também aquilo que a assemelha da escrita de diários, sua narrativa não segue normas ortodoxas a um registro diário. Entre outros motivos pelos quais faziam com que a escritora não seguisse uma rotina diária de escrita, houve um momento em que a ausência de escrita se deu por um espaço maior de tempo.

Para os muitos objetivos que venha a ter um diário pessoal, em uma primeira análise, esse processo de escrita do qual Carolina de Jesus iniciou em 1955 teve como principal finalidade seu desejo de denúncia, uma vez que compreendia uma sociedade a qual não tinha conhecimento daquilo que era vivido na favela, como ela mesma dizia, sobre o quarto de despejo da sociedade.

Para isso, a autora traz à tona questões polêmicas sobre a fome, o racismo e a segregação social vivida por ela e boa parte da vizinhança da favela do Canindé. “Duro é o pão que nós comemos. Dura é a cama que dormimos. Dura é a vida do favelado” (JESUS, 2012, p.42). O desejo da escritora vai além daquilo que desejou, sua revelação ultrapassou muitas fronteiras após publicação da obra.

A apreciação central do enredo se dá a partir de suas vivências para sobreviver em meio à fome pela qual lutava diariamente. Ao narrar sua resistência diária, revelava como era viver escondida de uma sociedade juntamente com seus filhos, cuja criação assumira sozinha – criou três filhos sem ajuda dos respectivos pais. “Refleti: preciso ser tolerante com os meus filhos. Eles não têm ninguém no mundo a não ser eu. Como é pungente a condição de mulher sozinha sem um homem no lar (JESUS, 2012, p.22).

Assim, em uma análise cuidadosa, é possível perceber uma escrita que resiste em campo hostil à literatura, a favela; temos uma escritora que faz da escrita o alimento para as suas dores, sejam elas causadas pela fome, pela pobreza e pelo racismo sofrido diariamente.

Ao tomar os fios que conduzem essa narrativa de ausências, esse tecido literário que vai pouco a pouco tomando forma, vai sendo contornado com letras firmes em cadernos recolhidos do lixo. A partir dessa postura, Carolina dá vida à sua voz, não permitindo, desse modo, que outra pessoa narre suas angústias e privações. Ou seja, ela seguia na contramão daquilo que vinha sendo produzido durante a escrita de Quarto de despejo (1960), especialmente ao assumir seu lugar de fala, reivindicando um protagonismo inaugural duplo, como autora e precursora de uma literatura nascida de dentro da favela.

Desse modo, a autora da favela é aquela que não permite que o outro tome seu lugar de fala, a partir desse comportamento vai marcando uma geração, uma vez que ela é a voz negra que se mostra, se revela e, assim, se expande dentro do texto. Essa escritora que reiterava constantemente ser negra, favelada, solteira, mãe, mulher, tinha uma preocupação constante com aqueles a quem sua escrita alcançaria.

A vedete da favela[4] escreve um diário tal como hoje em dia escrevemos em blogs, redes sociais ou similares, uma vez que postamos com o objetivo de sermos lidos. A escrita de Carolina ansiava venda, ascensão social, desejava prestígio, não só isso, uma vez que ela denunciava as mazelas sofridas dentro do Canindé. Quantos likes[5] receberia essa escritora pela sua ousadia e coragem ao assumir seu lugar de fala? Apesar disso, nem sempre é possível agradar a todos.

REFERÊNCIAS

CHARTIER & HÉBRARD. Por uma bibliografia material das escrituras ordinária: a escritura pessoal e seus suportes. In: CUNHA, Maria Teresa Santos, BASTOS Maria Helena Camara e.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. [Ed. Especial]. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. (Saraiva de Bolso).

______. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam.  São Paulo: Autores

JESUS, Carolina M. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 9ed. São Paulo: Ática, 2012.

LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Tradução de Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014).

RIBEIRO, Djamila. O que é: lugar de fala? Belo Horizonte (MG): Letramento, 2017. Arquivo Kindle.

[1] Análise da obra de Carolina Maria de Jesus. O trecho foi retirado, com pequenas alterações, da Dissertação de Mestrado de Erika da Silva Costa Agnellino.

[2] A favela do Canindé ficava às margens do Rio Tietê, por esse motivo sempre que o rio enchia, a comunidade sofria com enchentes.

[3] Freire defendia que “A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele” (1989, p.9).

[4] Composição de Carolina, música cantada por ela e lançada em seu primeiro long play Quarto de despejo, o disco (1961). O álbum completo pode ser conferido no site: https://oquartodecarolina.com.br/discografia/ Acesso em 12-11-2018.

[5] Ferramenta utilizada em algumas redes sociais quando algo (imagens, textos e outras publicações) é curtido pelo leitor. Do inglês, curtir. ”O botão “like” é uma forma de analisar o quanto você está sendo bem avaliado pelos usuários da rede social”. Disponível em: http://www.i9socialmedia.com/o-significado-do-%E2%80%9Clike%E2%80%9D-no-facebook/ Acesso em 12-11-2018.

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