capa da obra. Fonte: imagem cedida pelo autor
“O compósito verbal transnegressão, cunhado por ele [Arnaldo Xavier], tenta dar conta – através da justaposição dos vocábulos (transgressão + negro), ao estilo de montagem cinematográfica – de uma proposta estética interessada em lesar tanto as ideias feitas que orientam nossas filosofias de vida, quanto a imagem de um cânone totalizante, “universal”, vantajoso (para quem?), a ponto de poder ser aplicado em qualquer tempo-espaço” (AUGUSTO, Ronald, p. 119).
Esse fragmento, extraído do ensaio “Transnegressão”, do recente livro O leitor desobediente (2020), de Ronald de Augusto – publicado pela Editora Figura de Linguagem, de Porto Alegre – invoca-nos a uma tarefa interessada diante de nossas leituras. A palavra interessada aqui pode ser compreendida não apenas como gesto de produção crítica, mas principalmente como abertura sincrônica, para relembrar Haroldo de Campos (1977), às tentativas de significâncias do pensamento cultural e sua manifestação pela linguagem. A crítica ensaística de Ronald Augusto nos indica, pois, que façamos leituras em transnegressão (referência à prática poética e crítica de Arnaldo Xavier) da tradição literária e dos signos conservadores inscritos nessa mesma tradição.
Poeta renomado, autor de Cair de costas (2012), reunião de sua poesia entre os anos de 1983 e 1992, do Entre uma praia e outra (2018) e do recente A contragosto do solo (2020), crítico de poesia, músico, filósofo, editor, pensador da linguagem e de suas formas, entre outras atividades que executa, Ronald, como leitor atento e rigoroso, disserta sobre literatura, crítica literária, música, cinema e filosofia na inquietação dos 11 ensaios que compõem O leitor desobediente.
Em “Orfeu da conceição: uma tragédia não-negra”, por exemplo, o crítico se propõe à tarefa de revisitar a peça teatral de Vinícius de Moraes a partir da sua forma plagiotrópica (CAMPOS, 2005), mas também a partir da observação dos signos estereotipados na construção dos personagens negros no texto do “poetinha”. Apesar da imersão constante na cultura negra, no entendimento de Ronald, Vinícius de Moraes constrói os seus personagens, bem como o seu texto, içado no pensamento etnocentrado do homem branco, marcado pelo “alinhamento acrítico com a estereotipia.” (AUGUSTO, Ronald, p. 23).
Nesse sentido, em todos os ensaios que compõem O leitor desobediente, é possível observar essa escrita contundente – sincrônica e suplementar – atenta ao jogo entre leitor e leitura, entre texto e linguagem, entre pensamento e forma, que visa à recusa de certa tradição brasileira constituída. Esse procedimento pode ser notado em “A tacanha intransigência de Sérgio Miceli com as vanguardas”, “O continuísmo moreno do bigode de Leminski” e “O princípio da tolerância enquanto fachada”. Por isso mesmo, os textos do autor se fundam em um processo de ressignificância, cujo objetivo é, em um primeiro momento, a desleitura de padrões críticos-estéticos e a sua consequente reinvenção.
Já em “Oriki para Giba Giba”, é o viés estético-criativo de Ronald Augusto que rende homenagem ao compositor porto-alegrense Gilberto Amaro do Nascimento, falecido em 2014: “Giba Giba passou para o orum: Giba gira. Foi. […] Do outro lado desse muro ele calca leve o limo propiciatório sem pedir licença a ninguém”. (AUGUSTO, Ronald, p. 80). Entre a forma e o pensamento de um Oriki, percebe-se uma saudação rica em referências, em jogos verbais e estéticos.
Em outro ensaio – um dos mais importantes do livro, intitulado “Transnegressão” – o crítico inicia a sua reflexão partindo do questionamento de uma pesquisadora alemã sobre um poema caligráfico-visual que ele lhe apresentara. Ela teria perguntado: onde está o negro neste poema? Ronald – arguto em seu modo de pensar o ser negro enquanto potência estética no campo literário – responde à pergunta, traçando um novo modo de pensar a consciência negra, não apenas por sua via política nomeada, mas também pelo modo de dizer, pelo modo de usar a linguagem como operação formal, estética, que induz a novos significantes do ser negro na poesia.
No bojo de sua inscrição revisional da tradição – inclusive tensionando posturas reivindicatórias – o escritor afirma que a consciência do corpo negro se conforma também no modus operandi da linguagem e não apenas na construção dos sentidos confinados no imaginário político e social. Essa pulsão pela forma poética pode ser notada ainda nas análises feitas em “Walter Franco, dreaming ou não”, “Axévier, contralamúria” e em “Flores do mal: takes parisienses”. Neste belo ensaio sobre os poemas de Baudelaire, Ronald se desloca por uma Paris-paisagem – tempo, memória, passagem, linguagem – e a traduz a partir do seu olhar contemporâneo, afinado à prática crítico-estética que ele mesmo produz.
Logo, O leitor desobediente é um livro indispensável, não apenas por indicar a desobediência às leituras estereotipadas, mas por provocar o leitor a outras formas de percepção do gesto poético, da linguagem, da consciência negra, do pensamento contemporâneo em torno da literatura, da política, da filosofia e da arte. Tal livro – necessário às bibliotecas que se desejam críticas – contém ainda um atraente prefácio escrito pela poeta e pesquisadora Eliane Marques.
Referência
AUGUSTO, Ronald. O leitor desobediente. Porto Alegre: Figura de Linguagem Editora, 2020.