Imagem do acervo pessoal
Água Negra é o cenário em que se desenrola a história de Belonisia e Bibiana, duas irmãs muito unidas pela fala, pela luta e pelas perdas. Uma história que se dá em torno dessas duas meninas que se acidentam seriamente com aquele instrumento tão brilhante e de efeito devastador que era a faca que Donana, sua avó, mantinha guardada em sua mala antiga, repleta de lembranças, cobertas por um tecido sujo, e pelo tempo.
A família dessas meninas, que habita esse lugar, tão seco, árido e ausente de tudo, fica imersa na tragédia o suficiente para entenderem que a vida deve seguir. Uma irmã se manifesta, a outra tenta reproduzir as necessidades daquela cuja língua foi amputada. Sim, este é o início de uma história em que uma mulher não pode se manifestar. Mas essa história não é de uma mulher. Essa história é de um povo que não tem direitos, nem lugar.
Os anos passam e as meninas crescem. Crescem também as diferenças, a vida as separa por caminhos muito distintos, seja em distância, ou por modos de viver. Um se casa, tem filhos e milita junto ao marido por condições melhores para si e para seu povo. A outra, também se casa, mas por caminhos tortuosos, se depara com a triste realidade nua e crua de uma relação violenta e fadada ao fim.
Pelos três capítulos, os eventos se misturam entre o trabalho duro na terra hostil, na subserviência dedicada aos “donos da terra” e ao misticismo que envolve aquela comunidade de modo tal, que entidades metafísicas e pessoas se confundem no mesmo espaço. Por vários momentos, as brincadeiras de jarê (manifestação religiosa típica da Chapada Diamantina), são realizadas e funcionam como um refrigério para o sofrimento cotidiano. Uma forma simples de alcançar o sagrado através de Zeca Chapéu Grande, das entidades incorporadas, e dos pedidos realizados em prol daquela comunidade.
A seca, que durou anos, transformou aquela fazenda, e o cemitério um lugar de visitas constantes. Numa terra em que não se podia plantar, nem construir casa de alvenaria, enterrar seus mortos também seria uma problema, pois até o lugar do derradeiro descanso, era escolhido pelo detentor de todo aquele espaço.
A morte levou muitos. Levou os patriarcas, os homens daquela família. E às mulheres daquela casa, restou o poder pleno de liderar uma luta iniciada pelo jovem Severo. E que também já era a luta velada do Zeca Chapéu Grande. Homens que respeitaram suas mulheres, suas famílias e principalmente, seu povo.
O silêncio que havia tomado a vida das irmãs Belonisia e Bibiana, durante toda a sua vida, foi substituído por uma força e uma voz que não poderia ser calada. A guerra era daquelas mulheres agora. Delas e de toda a força que cabia nos braços que carregaram filhos, dores, enxadas e facas. Esse objeto pontiagudo, lembrado muito bem pela Sansevieria trifasciata, a planta sul africana conhecida como espada-de-ogum ou espada-de-são-jorge. A planta, que reflete a força e o poder do Santo guerreiro, que fazia seus próprios instrumentos de guerra, conhecida por espantar o mau-olhado, o quebranto, segundo as religiões de matrizes africanas, reconhecidas por serem purificadoras do ar doméstico.
Que outro elemento poderia representar melhor a guerra travada pelo povo negro, em terras consumidas pelas mineradoras e pelos grandes latifundiários, se não a planta que representa uma força capaz de encerrar todo o mal voltado para uma casa? Nesse caso, para um povo? A espada-de-ogum, em nenhum momento citada no livro, se mantém viva, enquanto lemos a história de um povo que nunca teve direito a um lugar e teve que se submeter por várias gerações para conseguir o sustento mínimo para não padecer de fome.
As minorias ganham voz na literatura de Itamar Vieira Junior, à medida que Tortor Arado, com sua história ficcional, repleta de misticismo e religiosidade, se mistura à uma realidade que parece estar debaixo de um tapete junto com outras mazelas sociais longe dos olhos daqueles que precisam conhecer um Brasil, que se manteve escondido e silenciado debaixo da tutela de alguns homens detentores de poder.
A faca, do Fio de Corte, que causou tamanha tragédia, foi o instrumento que deu força suficiente para um Torto Arado que não podia parar no campo, e que precisava produzir de qualquer jeito,mesmo que isso ocasionasse um Rio de Sangue.
Obra: Toro Arado
Editora: Todavia; 1ª edição (7 agosto 2019)
Idioma : Português
264 páginas
ISBN-10 : 6580309318
ISBN-13 : 978-6580309313