Vida e Arte de Judith Bacci*

Judith Bacci esculpindo

Desde sua criação em 1949 a Escola de Belas Artes (EBA), em Pelotas- RS, estava cercada de pompas, a começar pela sessão solene de inauguração realizada em 19 de março, do corrente ano, no Salão de Honra da Biblioteca Pública de Pelotas. Merecendo inclusive a presença do prefeito e seus representantes, além de elogios em reportagens na imprensa local no Diário Popular (DINIZ, 1996).

A EBA foi fundada como uma instituição privada criada por um grupo representativo de pessoas e pelo esforço de Marina de Moraes Pires, primeira diretora da recém inaugurada escola. Os primeiros professores foram Aldo Locatelli, Carmen Wisintainer, além da diretora acima citada. A escola instalou-se provisoriamente numa sala cedida pela Biblioteca Pública de Pelotas. Somente em 1963, com a doação do prédio na Rua Marechal Floriano, nº. 177 e nº. 179, por Carmen Trápaga Simões, é que a escola passou a ter um local próprio (DINIZ, 1996).

Neste momento é que a presença de Judith Bacci foi necessária e, a convite da fundadora, a futura artista passou a prestar serviços como zeladora da escola, inclusive morando no local onde possuía um bar.

Fica evidente que, neste contexto, Judith entrara num meio bastante fechado, que ditaria as regras a serem seguidas para o atendimento dos interesses dos dominantes. Além de todo o apoio elitista que a escola recebia, ainda contou com um docente de grande importância e prestígio para a sociedade, como Aldo Locatelli. Com este conceituado artista italiano e professor de desenho e pintura a escola passaria a destacar-se ainda mais.

A criação da escola de Artes na cidade foi, sem dúvida, o início da implantação de um sistema de artes e, como vimos, dominada por uma elite que ainda gozava dos frutos do apogeu econômico vivido pela cidade.

Em sua estrutura, a EBA se inspirava nas diretrizes da Escola Nacional de Belas Artes (ENBA) da Universidade do Brasil (DINIZ, 1996). Tal instituição era regida pelo academicismo, método que utilizava um sistema rígido de produção artística padronizada, baseado em aulas de desenho de observação e moldes. A tradição de cultura que a cidade possuía pelo seu apogeu econômico, de certa forma, era mantida ou reforçada através da arquitetura eclética e imponente e das produções artísticas e/ou da posse delas. Logo, este caráter elitista da arte é ditado por construções suntuosas e pela falta de alcance dos mais populares às produções de arte. Apenas uma minoria privilegiada tinha acesso à formação e informação específica.

Ainda de acordo com Diniz (1996) este grupo compartilhava do mesmo conceito de arte e de gosto idêntico em relação ao estilo que deveria ser adotado na nova instituição de ensino. Ou seja, existia apenas uma maneira correta de criar, a preferida por esta classe de poder econômico e político. Mesmo ao perder esses poderes a sua ideologia mantinha-se, pela unificação do mercado de arte, e pela imposição da cultura da classe dominante.

A formação dos alunos da EBA dentro da linha acadêmica moldava ideias e influenciava os alunos a eleger apenas um estilo em detrimento de outros. Neste meio Judith, mulher, pobre e negra, começou a trabalhar como zeladora. Com o passar do tempo foi assimilando algumas técnicas que observava nas aulas e, devido a dificuldades financeiras, sua trajetória na escultura processava-se lentamente.

Os primeiros objetos realizados por ela foram pequenos pratos de gesso em relevo, na década de 60, dos quais ela poderia fazer outras cópias e vendê-las. Primeiramente eram pintados com goma-laca e depois começou a utilizar cores. Esses pratinhos lhe forneciam uma renda extra, além do salário que possuía como zeladora.

Judith, nascida em 1918, casada com Mário Bacci, com quem teve dois filhos, Mário Eugênio e Vera Lúcia, teve sua história marcada por resistências desde o início. Já em seu casamento com Mário Bacci, branco e de ascendência italiana, houve os primeiros obstáculos proporcionados por parte dos familiares do esposo.

Mesmo sofrendo esse preconceito nesta situação de inferioridade na própria família, Judith era muito independente, até porque era ela quem sustentava a família, pois já neste período inicial de confecção dos pratos em gesso.

Em relação à religião, havia outro fator de “desconforto” no meio de uma sociedade elitista em que vivera. Talvez pela sua personalidade, pois em muitos depoimentos se repete a definição dela como carismática e muito amiga, eram muitos os convites de diferentes segmentos religiosos. Convivia no meio católico, que era o aceito e predominante na elite da EBA, mas também ia à cartomante, e frequentava a umbanda e depois o candomblé.

Muitos de seus trabalhos possuem essa característica religiosa, tanto católica quanto afro e, nesta última vertente, provavelmente enfrentou muitos obstáculos, ou rejeições, devido à falta de tolerância religiosa, que ainda nos dias de hoje estão impregnadas na sociedade. No seu dia a dia, Judith passou a conviver com vários nomes do meio artístico pelotense. Inicialmente Locatelli, pintor, e Brausteim, escultor em madeira, além de Bruno Visentin e Nestor Marques Rodrigues (Nesmaro), os quais foram hóspedes na sua casa por um tempo, na EBA.

Este contato bastante próximo a professores artistas despertou a curiosidade de Judith. Tanto que, nos momentos em que entrava nas salas de aula para limpar ou servir o café do professor, acabava permanecendo um pouco mais para captar alguma informação.

Posteriormente, Judith recebeu o apoio de Caringi já num momento de maior produção da artista, inclusive com a defesa dele para que ela pudesse permanecer alguns minutos na sala para aprender algo, tamanha a oposição de alguns em deixá-la crescer profissionalmente.

A maioria das obras de Judith se aproxima do estilo realista, seus bustos eram retratos extremamente fiéis aos retratados; ela captava a expressão facial com propriedade. Nas obras religiosas essa fidelidade também se repetia ao representar santos e entidades com minúcia de detalhes e atributos.

Como vimos, o estilo imperante na EBA era o academicismo, vertente que busca definir regras específicas de composição com base numa representação realista, tradicional. Entretanto, novos ares passaram a permear a escola, e tentativas de renovação foram surgindo. Note-se que há muito já havia surgido o modernismo europeu e, no Brasil, transcorrida a Semana de Arte Moderna de 1922.

De acordo com Diniz (1996), por volta de 1967 os alunos da EBA já buscavam algo novo que fugisse das orientações acadêmicas. Esse processo foi ainda mais incentivado pela democratização dos meios de comunicação de massa na cidade, como a TV. Ela possibilitava, simultaneamente, a vivência das mesmas situações culturais em diferentes localidades. Pelotas estava em consonância com os grandes centros, como Rio de Janeiro e São Paulo. Esta globalização trouxe uma pluralidade e internacionalização de estilos que começaram a questionar (ou a conflitar com) a arte tradicional.

Outro fator para a atualização pelotense foi o intenso contato com artistas porto-alegrenses, com mostras e cursos ocorridos na cidade, além de professores de outras universidades que colaboravam ministrando aulas no curso de especialização do Instituto de Letras e Artes (antigo EBA). Este fluxo de relações ocorreram na década de 1970 e 1980 e influenciaram a arte local (DINIZ, 1996).

Com a criação da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), em 1969, a EBA foi agregada a esta instituição. A cerimônia da “passagem da Escola de Belas Artes para o Instituto de Artes da UFPEL” (Franco, 2008, p.537) foi em 13 de julho de 1973, conforme os diários de Dona Marina de Moraes Pires.

Com esta união,ampliou-se o alcance do ensino das artes na cidade, por ser agora uma instituição federal e por toda a sistematização gerada pela fusão. Em conseqüência disto, na década de 1970 Judith tornou-se laboratorista em cerâmica, ajudando os professores da Instituição nas aulas de escultura. Nesse momento seu trabalho ganhava maior reconhecimento profissional.

Vieram novos professores com novas propostas para as artes plásticas, possibilitando novas expressões simbólicas e orientações diferentes para os alunos. Os resultados dessa reestruturação foram sentidos de fato na década de 80 (DINIZ, 1996). Coincidentemente, no período em que Judith mais produziu. Neste cenário, ao observar as produções de Judith, pode-se perceber que sua trajetória caminhou nos mesmos passos da criação e evolução da EBA. Seu estilo era sim realista, a exemplo de outros artistas da época como Antônio Caringi. Na escultura, entretanto, ela ainda não recebera o status de artista por resistência da sociedade, não somente racial e econômica, como também por sua falta de formação especifica na área.

A artista possuía o terceiro ano primário e seu conhecimento artístico veio de curiosidades, inquietações e observações (até mesmo de alguns minutos das aulas de Caringi e Brausteim). Ela era uma artista autodidata, realista como Caringi, mas não acadêmica e, por isso também, não recebera o reconhecimento merecido de artista no meio elitista.

Exemplo de seu conhecimento são as obras mais modernistas, em consonância com os novos anseios do ILA, que já buscavam ideias modernizadoras. Judith também produziu neste estilo, no fim da carreira, na década
de 80, segundo Diniz (1996), período de auge da modernização artística pelotense. Sendo assim, observa-se que a artista atualizou-se estilisticamente de acordo com as ideias artísticas contemporâneas à época.

A história de Judith foi marcada por resistências e dificuldades. O ambiente elitista da Escola de Belas Artes impunha um estilo artístico que valorizava apenas o trabalho do artista que tivera passado pela academia, que possuísse o conhecimento científico. Dessa maneira, o trabalho de Judith se distanciava dos padrões da época e suas produções não ganhavam espaço frente às obras de artistas renomados.

Entretanto, o caráter de resistência, dedicação, superação e luta por melhores condições de vida garantiram à artista o seu lugar na escultura. Embora na época não tivesse sua valorização adequada, conseguiu garantir um espaço que permitisse a produção de sua arte.

Seu reconhecimento não partiu daqueles que detinham o conhecimento, e sim, primeiramente dos amigos próximos e de clientes que encomendavam obras à artista. Esses clientes ganharam um vulto tão grande, que começaram a chamar a atenção das pessoas que conviviam com ela no meio acadêmico. Talvez nem a professora Marina de Moraes Pires, ao convidar Judith para trabalhar na EBA, imaginaria o quão longe chegaria aquela simples zeladora.

Sua presença causava desconforto no ambiente da época, pois não era possível atribuir-lhe, naquele momento, uma classificação plausível ao grau de desenvoltura de suas obras. Era sim uma artista autodidata, mas que possuía uma qualidade única de dar vida às obras, tamanho o realismo de suas produções nos retratos em escultura. Não era uma simples habilidade de cópia, ela possuía o poder da expressão.

Além disso, suas obras religiosas possuíam o requinte de detalhes e atributos que, somente quem estivesse mergulhado nesse mundo religioso, seria capaz de compreender e exprimir no barro. Era preciso sentir, não apenas copiar. Ela tocava as pessoas pela emoção. Possuía também conhecimento da atualidade, pois suas últimas obras também rumaram para um expressionismo baseado nas vertentes modernistas da época, assim como os demais artistas também o faziam. Sem dúvidas, Judith foi uma artista. Como já percebemos até mesmo nas críticas de Nelson Freitas.

No momento de apogeu de sua carreira, na década de 1980, suas obras chegaram a ganhar destaque nacional com o busto de Tancredo Neves. O papel da imprensa, sobretudo de Nelson Freitas, foi significativo para a visibilidade e respeitabilidade de Judith como artista. Muitos alunos também reconheciam o valor de Judith, ela era necessária nas aulas, pois os ajudava nas técnicas construtivas até mesmo nos horários em que os professores não estavam por perto.

O fato de Judith ser negra e pobre foram fatores geradores de preconceitos e, a artista precisou vencer o obstáculo da discriminação, sobretudo no ambiente em que estava inserida, para mostrar a seriedade de seu trabalho.

Outro fator adverso à vida de artista foi a luta entre conhecimento empírico e científico. Infelizmente, algumas pessoas de má fé, faziam uso da falta de instrução da artista para “propor” um preço inferior ao de mercado às suas obras e, posteriormente, as revendiam por um preço mais elevado, gerando um processo lucrativo, mas equivocado. O fato de não cobrar por suas obras ou cobrar pouco, pode ter influenciado para a pequena valorização de seu trabalho. A escultora possuía o terceiro ano primário, escrevia muito pouco e, com todas essas dificuldades produziu suas obras a contento dos clientes que a procuravam.

Embora não possuísse o conhecimento científico, aquele saber empírico, baseado na própria experiência da escultora, gerou uma produção com grande procura e crítica positiva. Por isso, acredita-se que o conjunto de obras que a artista produziu, ao longo de sua trajetória, merece receber a designação de patrimônio cultural. Pois em sua maioria são bens destinados ao usufruto de uma comunidade, de uma coletividade. São obras de relação e uso com e pela comunidade, ou seja, são significativas para esta sociedade e precisam ser preservadas, para não caírem no esquecimento. Este acervo patrimonial enriquece a cultura local, evidencia a diversidade cultural existente e serve de registro para a cidade, por exemplo, de práticas religiosas locais, e de personalidades importantes para Pelotas.

O conceito de patrimônio não é estanque, está sempre em atualização. Cabe também à comunidade (a partir da memória coletiva), que possui profunda relação com o bem, identificar e administrar o seu patrimônio reconhecendo e atribuindo os seus valores.

Preservar o patrimônio cultural garante a compreensão do patrimônio social. Suas obras mantém e preservam uma comunidade étnica e religiosa, o monumento tem o poder de trazer à lembrança algo do passado.

Sua obra era significativa em vários contextos, relacionando-se com a religiosidade e com personalidades não somente locais. e merece um olhar mais atento para sua preservação. Suas obras não fazem parte somente do passado, elas são significativas no presente também, pois ainda mantém relação com a sociedade.

Judith não possuía o caráter de discriminação, acolhia as diversas classes e religiões alcançando uma diversidade de públicos. Por isso, o conjunto de sua obra é extenso e permeia vários contextos, relacionando-se tanto com a cultura popular quanto com a elite.

Por isso, a obra de Judith merece um destaque maior perante a sociedade.  Ela deve contribuir para enriquecer o acervo cultural da região e, com isso, pode-se proporcionar a um número maior de pessoas o acesso à arte, democratizando-a e colaborando para a desconstrução do caráter elitista da arte e da sociedade local.

Referências:

DINIZ, Carmen Regina Bauer. Nos Descaminhos do Imaginário: a tradição
acadêmica nas artes plásticas de Pelotas. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais
UFRGS). Porto Alegre: 1996.
PAIXÃO, Antonina Zulema. A escultura de Antônio Caringi: conhecimento, técnica
e arte. Pelotas: Editora e Gráfica Universitária UFPel, 1988.
SILVA, Ursula Rosa da. Revisitando o ILA (1969-1989), texto do painel histórico
da Mostra, Pelotas, Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo (MALG), outubro de 2010.
WAISMAN, Marina. El patrimonio en el tiempo. Revista Summa Mas. Nº. 5.
Buenos Aires, 1994.

*Trecho extraído da monografia “Arte, realismo e religiosidade na obra de Judith Bacci: Um patrimônio a ser preservado “(2011)  apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Artes – Patrimônio
Cultural da Universidade Federal de Pelotas.

** Este artigo é de autoria de colaboradores do PORTAL BAOBABE e não representa ideias ou opiniões do veículo. O Portal Baobabe oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.