Ser e estar negro na Ilha da Magia: negro drama, Negro Rudhy*

Imagem cedida por Negro Rudhy

Primeiro, peço licença para expressar a importância desse trabalho pra mim através das palavras de Conceição Evaristo, em seu livro “Becos de Memória” (2017), onde ela diz:

“Menina, o mundo, a vida, tudo está aí! Nossa gente não tem conseguido quase nada. Todos aqueles que morreram sem se realizar, todos os negros escravizados de ontem, os supostamente livres de hoje, se libertam na vida de cada um de nós, que consegue viver, que consegue se realizar. A sua vida, menina, não pode ser só sua. Muitos vão se libertar, vão se realizar por meio de você. Os gemidos estão sempre presentes. É preciso ter os ouvidos, os olhos e o coração abertos!”

E assim, é com os ouvidos, os olhos e o coração abertos que começo a falar sobre o que nos uniu aqui nessa tarde: o rap. Falar sobre o rap engajado no Brasil é falar sobre resistência! Falar sobre esse tipo de rap é falar sobre negritude, sobre diáspora africana e estéticas negras, além das performances que esse gênero poético-musical traz: seja a performance vocal, linguística ou corporal, no sentido do corpo político e politizado, porque como diz Paul Zumthor:

Quanto à presença, não somente a voz, mas o corpo inteiro está lá, na performance. O corpo, por sua própria materialidade, socializa a performance, de forma fundamental […] A performance é uma realização poética plena (ZUMTHOR, 2005, p. 86-7).

Esse corpo político através do rapper emana também a voz de sua comunidade como o faz aqui Negro Rudhy, o representante do bairro Monte Cristo e desse estilo de rap engajado, ou rap gangsta, como dizem seus produtores. Esse corpo negro é um corpo que não está na prisão ou nas estatísticas dos corpos negros cotidianamente assassinados no Brasil, pois o genocídio do povo negro é um projeto que ocorre desde o período da escravização. E inúmeros estudos comprovam que as condições de vida dos negros no país em praticamente todas as áreas (saúde, educação, qualidade de vida, etc.) são sempre inferiores às dos brancos. Por que será?

Esse ano de 2019, Negro Rudhy completa 20 anos de carreira, e desde 2016 foca em sua carreira solo, todavia, não podemos esquecer que NR é co-fundador do grupo Arma-Zen, um dos grupos pioneiros do rap catarinense. O rap catarinense surgiu em fins de 1980 no bairro Monte Cristo, onde NR mora. Atualmente as batalhas de rap ganharam mais espaço e as transformações no processo de profissionalização do rap começaram a ficar mais visíveis com a ascensão de rappers como Emicida e Criolo na mídia convencional.

Em 2015 nossos caminhos, meu e de NR, se cruzaram num evento sobre Consciência Negra na Universidade Estácio de Sá, e em 2017 propus ao rapper a interlocução dessa pesquisa a fim de focar nas transformações e contradições do rap ao longo dos mais de 30 anos de existência desse gênero no país olhando a partir do contexto local, pois no mundo globalizado que vivemos ocorrem as intersecções do local-global.

Com o aceite dele, acompanhei um pouco de sua vida profissional, e até mesmo familiar, em alguns momentos. Acompanhei alguns shows e eventos que fez em baladas, na rua, nos teatros e na universidade; acompanhei o período que teve sua barraca de vendas na Feira Afro Artesanal, além da constante movimentação em suas redes sociais: Facebook, Instagram e Youtube, porque já não podemos ignorar o potencial que essas tecnologias virtuais assumiram em nossas vidas. Aliás, o acesso à internet possibilitou que as artes periféricas atingissem maior público, bem como continuasse garantindo autonomia no processo de criação e difusão de suas artes.

Falar sobre rap é falar sobre a Poética da Relação, teoria cunhada pelo martinicano Édouard Glissant, uma espécie de poética que se estende numa identidade-rizoma, onde a minha identidade se complementa com a outra num processo de devir incessante de reverberações e aprendizados, conforme diz o autor:

Por vezes, é abordando os problemas do Outro que nos encontramos a nós mesmos […] É bem a imagem do rizoma, que nos faz reconhecer que a identidade não está só na raiz, mas também na Relação (GLISSANT, 2011 – grifos meus).

O rap na Ilha do Desterro evoca uma poética de “ser e estar Negro” num espaço predominantemente branco, pois sabemos que o Sul do país possui o maior número de pessoas autodeclaradas como brancas: só em SC temos 76%. Portanto, uma busca emancipatória cultural, social, financeira e mesmo histórica através do rap em pleno século XXI nos remete diretamente às histórias de negros e negras que foram trazidos pra essa Ilha em séculos passados; nos faz lembrar também de Cruz e Sousa, Luiz Gama, Nelson Mandela, Antonieta de Barros e tantos outros personagens negros e historicamente ativistas pela busca de equidade de direitos aos povos desterrados de África, e que ainda passam invisibilizados nos livros didáticos escolares.

Foi a partir de Negro Rudhy que pude observar a expansão do conceito tão caro aos estudos afro-diaspóricos, mas tratados principalmente por De Bois e Paul Gilroy a respeito da “dupla consciência” e evoquei o Negro Drama, que se tornou hino do rap nacional pela música homônima do grupo Racionais MC´s, para torná-lo uma reatualização dessa dupla consciência e pensar o “ser e estar negro” a partir das contradições do sistema capitalista e da busca pela emancipação do artista na cidade de Florianópolis, ou seja, ser negro e estar pobre são os dilemas que acusam para que vejamos os racismos estrutural, institucional e histórico.

Porque é no processo de busca emancipatória que vemos os percalços vividos pelos negros que podem passar despercebidos aos brancos, como conseguir um emprego, entrar numa universidade – antes das cotas raciais – ou mesmo ser um artista reconhecido pela sua arte. É aqui que vemos o racismo estrutural e institucionalizado operando silenciosamente, pois como diz Silvio de Almeida a respeito disso:

Uma vez que o Estado é a principal instituição política do mundo contemporâneo, o racismo alimenta e ao mesmo tempo, é alimentado, pelas estruturas estatais. É por meio do Estado que a classificação de pessoas e a divisão dos indivíduos em classes e grupos ganha concretude (ALMEIDA, 2017, p. 8-9).

Saliento que entendo EMANCIPAÇÃO aqui pelo viés etimológico da palavra, qual seja de “tornar-se independente ou ainda libertar-se de alguns dispositivos de poder”, mesmo que tenha que para isso entrar em negociações ao modo daquilo que Stuart Hall (2003, p. 341) já havia informado a respeito da cultura popular negra como sendo o espaço de contradição, mas também de contestação estratégica, conforme ele ainda salienta:

Já as estratégias culturais capazes de fazer diferença são o que me interessa – aquelas capazes de efetuar diferenças e de deslocar as disposições de poder (HALL, 200, p. 39).

Ser o Negro Drama, então, desestabiliza as disposições do poder dominante, visto que o rapper transita por diferentes espaços agindo através de performances artísticas, sociais e afroempreendedoras que o permitem ser o “marginal” que se torna um “vulto” a desestabilizar o sistema.

Para sobreviver em meio à “ilha de concreto e aço”, como o rapper diz, encontramos também uma cidade cindida, uma cidade invisibilizada por detrás dos “becos, guetos e vielas”. É em oposição à Ilha da Magia que o rapper nos apresenta a Florianóia, música escrita por ele e gravada com seu grupo Arma-Zen. A Florianóia pode nos fazer pensar tanto na paranoia que se instaura entre os sujeitos que usam drogas, visto que entram na “nóia”, quanto pelos sujeitos que querem fazer dessa cidade uma nova “Beverly Hills” em que a maior preocupação é adquirir mais estacionamentos para as lanchas de luxo da classe média alta que aqui vive.

Circulando pelos espaços dessa Florianóia o rapper marginal, no sentido tanto daquele que vive à margem ou aquele que tem conflito com a lei, nos apresenta suas identidades-rizomas que podem remeter ao flanêur baudelairiano ou ao malandro figurado no samba brasileiro, mas mais ainda na epistemologia de Exu, termo cunhado pela pesquisadora Edelu Kawahala, pois:

Pensar numa Epistemologia de Exu seria, portanto, arriscar-se na encruzilhada, mas também gerar resistência, promover a potência. […] a capacidade de todos os negros na diáspora de resistirem e criarem novas formas estéticas e éticas em direção à superação das consequências da colonialidade. […] É o olhar que não busca necessariamente unidade, mas respeito na diversidade (KAWAHALA, 2014, p. 89).

Desse modo, então, Negro Rudhy incorpora o marginal Negro Drama para poeticamente falar pela favela, essa então torna-se o ente de diálogo e difusão do artista. “Favela convoca”: é o nome do seu primeiro álbum da carreira solo! “Se é favela então convoco pra guerra”, diz ele, sendo a guerra cotidiana contra o sistema opressor, representado pelos dispositivos de poder que vão desde o controle da linguagem utilizada pelos rappers – pois a língua do rap é o “favelês” -, passando pela vestimenta, roupas largas e o boné de aba reta – marca registrada desse gênero musical que já expandiu para diversas áreas; e ainda ousar tornar-se empreendedor num universo nebuloso que é o mercado do entretenimento.

Empreender no rap é colocar em xeque as contradições que o movimento hip hop enfrenta desde os primórdios: fazer um discurso de protesto e resistência e ganhar dinheiro ao mesmo tempo. Mas a pergunta é: se todos os outros artistas de diferentes gêneros musicais ganham dinheiro, por que o rapper não pode? O rapper engajado não perde o seu “proceder” porque está ganhando pelo seu trabalho; e por que ele não merece ser reconhecido?

Negro Rudhy juntou-se ao afroempreendedorismo da Feira Afro Artesanal para mostrar mais uma das facetas de sua identidade-rizoma e foi lá que percebi em diversos momentos suas poéticas de Relação sendo gestadas naquele que seria o seu segundo álbum, Katana, lançado em 20 de novembro de 2018, no Teatro Álvaro de Carvalho, espaço de pompa que trouxe uma “noite de gala” ao rap catarinense.

A respeito desse conceito de afroempreendedorismo é importante vê-lo como uma estratégia que vigora desde os primórdios dos movimentos negros, tendo como característica principal a luta contra o racismo, conforme diz Nascimento:

Os afroempreendedores, em sua maioria, afirmam a luta contra o racismo, promovem a visibilidade positiva da identidade negra, realizam atividades voltadas para o empoderamento estético e identitário da população afro-brasileira. […] Dessa forma, incentivam o consumo de produtos e serviços oferecidos por empreendedores negros que valorizam e fortalecem a identidade étnica afro-brasileira e africana (NASCIMENTO, 2018, p. 2).

Ora, o rap por si só já reivindica a raiz diaspórica africana, daí a adotar a postura de afroempreendedor juntamente com a Feira Afro Artesanal só veio fortalecer as Relações que Negro Rudhy tinha, seja com artistas que ali expõem ou de ocupar a Escadaria do Rosário no centro da cidade, lugar histórico dos negros desde que aqui chegaram. Inclusive, é por isso mesmo que os organizadores da Feira Afro afirmam que aquele espaço é um “quilombo urbano de resistência”, e que por isso mesmo já passou por diversos impeditivos e censuras “sutis” ao longo dos dois anos de sua existência.

Negro Rudhy é o rapper Negro Drama que se emancipa enquanto artista engajado que atua dando palestras, fazendo shows ou vendendo seus produtos. Se é o cifrão que condena, mas ao mesmo tempo alimenta os sujeitos nesse sistema capitalista em que vivemos, por que não tentar negociar com aquilo que de melhor se sabe fazer? Por que não ter a sua arte sendo difundida garantindo assim, ao menos poeticamente, a propagação de sua discursividade combativa, a tão almejada “Revolução Através das Palavras” pelo rap?

Desse modo, também, resgatando personagens e trazendo para a coletividade a importância da união entre os irmãos, que o rapper Negro Drama ultrapassa as barreiras impostas ao povo negro pelo sistema vigente tentando minimizar as consequências dos racismos histórico, estrutural e institucional que reverberam ao longo dos anos.

Ao optar por “viver de rap”, o artista nada mais faz do que tomar o que é seu como um direito, ou seja, o direito de se assumir enquanto um artista engajado e que quer usufruir dos cifrões que estão disponíveis no sistema capitalista, embora tenha plena consciência de que essa relação pode ser tensa e contraditório, ainda assim o rapper resolve assumir os riscos e tensões para propagar sua arte, que é o seu bem mais inestimável há vinte anos em sua vida.

*Esse texto foi a apresentação de defesa da minha tese de doutorado em Literaturas na UFSC, cujo tema é “NEGRO RUDHY E A EMANCIPAÇÃO CULTURAL DO RAP NA ILHA DO DESTERRO DO SÉC. XXI” (MELLO, 2019).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ALMEIDA, SílvioLuiz de. Estado, direito e análise materialista do racismo, 2016. Disponívelem https://www.youtube.com/watch?v=Pyn40G76kBI. Acesso em 10 jan. 2019.

FAVELA CONVOCA, CD Negro Rudhy, 2016.

GILROY, Paul. O atlântico negro: Modernidade e dupla consciência. 2. ed. Rio de Janeiro: 34, 2012. Tradução: Cid Knipel Moreira.

GLISSANT, Édouard. Poética da Relação. Editora Sextante, Lisboa, 2011.

HALL, Stuart. Da diáspora: Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Ufmg, 2003. Organização Liv Sovik; Tradução Adelaine La Guardia Resende…[et all]..

KAWAHALA, Edelu. Na encruzilhada tem muitos caminhos– teoria descolonial e epistemologia de Exu na canção de Martinho da Vila. 2014. Tese (Doutorado)- Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Comunicação e Expressão, Programa de Pós-Graduação em Literatura, Florianópolis, 2014.

NASCIMENTO, Eliane Quintiliano. Afroempreendedorismo como estratégia de inclusão socioeconômica. III Seminário de Ciências Sociais – PGCS UFES. 12 a 14 de novembro de 2018, UFES, Vitória-ES. Disponível em www.periodicos.ufes.br/scs/article/view/21718.  Acesso em 21 fev. 2019.

ZUMTHOR, Paul. Escritura e nomadismo: entrevistas e ensaios. Tradução de Jerusa Pires Ferreira, Sonia Queiroz] Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2005.

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