Nasci parda e isso bastava. No cartório perguntam: – O nome da criança? Filiação? Cor? Parda, minha filha é parda, respondeu meu pai naquela tarde de terça no ano de 1984. Essa era eu, a filha parda de uma mãe não-branca e de um pai negro.
Ainda criança, minha mãe reclamava muito do meu cabelo cheio e enorme, ia quase na cintura. Ela resmungava do choro e das horas nas quais passava o pente e a escova para desembaraça-lo. O meu cabelo era muito “difícil” de ser tratado.
– Não tem como continuar com esse cabelo!
Ela dizia. Então, ela decidiu que precisava deixá-lo razoável. Pronto para ser cuidado. Então foram muitos processos de alisamento. Nem lembro os nomes. Não podia escolher… só sei que nunca esse meu cabelo “melhorava”. E minha mãe, com seus dias cheios de afazeres e com esse meu cabelo para resolver, decidiu que seria bom cortá-lo.
– Bem baixinho, pra não dá trabalho!
Eu não podia decidir. Mas cresci ouvindo que meu cabelo não era bom, e que eu precisava deixá-lo melhor.
Começou no meu cabelo, o fato de eu nunca estar nos moldes de beleza. E nos padrões aceitáveis de cabelo. Existia um único modo de ter um cabelo bonito: ele tinha que ser liso. Ele tinha que não fazer uma curva. Ele tinha de crescer e se movimentar à medida que eu caminhava.
A adolescência não me deixava esquecer e eu pensava: esse meu cabelo, me dá muito trabalho. Então, eu alisava, esticava e puxava. Eu usava de tudo. Era incansável. Eu precisava ser aceita de algum modo. Eu, e meu cabelo. Eu e minha magreza. Eu e meus dentes grandes. Eu e minha roupa démodé. Eu e meu único par de sapatos. Eu e minha vontade de pertencer.
Eu era uma aluna exemplar! A famosa nerd. E não tinha muitos amigos, nunca os tive. Eu era muito chata! Com certeza era isso… Eu sempre sabia de tudo! E não era bonita. Constatei solenemente! – Era pobre e feia. Ser inteligente era o que me restava… assim, seria aceita.
Mas a adolescência nunca foi fácil para ninguém. Participava dos grupos, quando era permitido. Tinha poucos amigos, quase nenhum. Sempre estive próxima de pessoas mais velhas. Elas não se importavam muito com meu cabelo. Eu podia dizer muitas coisas perto delas… era sempre tão bom discutir aquelas ideias… Mas ainda era uma garota estranha…
– Você tem uma alma velha!
– Você nem parece tão jovem!
Com esses comentários, eu cresci deslocada e prematuramente tive que fazer escolhas muito graves para tentar me encaixar nesse mundo. Sem um cabelo aceitável, sem dentes aceitáveis, sem um corpo aceitável… eu ia atropelando meus dias, tentando ser aceita. E nessa época, eu ainda não conseguia decidir.
A cor na certidão de nascimento: parda. A minha cor? Ah… não tinha importância. Nunca teve. Não diz nada sobre mim. Eu nunca precisei saber para entender como eu era, ou como me situava nesse mundo.
Mas a vida adulta chega e exige de nós posturas diferentes. O meu cabelo ainda não havia melhorado, e eu precisava me encaixar no mercado de trabalho. Precisava ser inteligente, e aceita. O meu cabelo… o meu cabelo não tinha jeito.
– A culpa é sua mãe, que não casou com um branco.
A culpa tinha que ser de alguém. A culpa do meu cabelo ruim. A culpa da minha não aceitação. A culpa de eu não ser bem quista. A culpa de eu não me encaixar. A culpa de eu ser parda. Parda? Por quanto tempo, me identifiquei assim, sem refletir o que isso significava?
Fiz vestibular, entrei na vida acadêmica, e essa era para mim, a prova definitiva de que eu havia ultrapassado todas as barreiras sociais, e todas as dificuldades em ser de família pobre. Se eu consegui, qualquer um poderia. Ser parda e pobre, não me tirou o poder de ser uma acadêmica, de ser uma boa profissional.
Então, engravidei, aos 28 anos e alisamentos contínuos no meu cabelo não seria mais possível. Foram 8 meses de gestação, e no terceiro mês após o puerpério, me olhei no espelho, encarei aquele cabelo nascente crespo, totalmente livre de químicas e de olhares maldosos… Aquele cabelo que não tinha medo de sair e aparecer. Enfim, peguei uma tesoura e cortei aquelas pontas finas e alisadas.
\”O que houve\”? As pessoas perguntavam ansiosas sobre o destino das madeixas alisadas e o por que daquele cabelo curto e cacheado, cacheado não, crespo. Meu cabelo é crespo… não precisa eufemizar. Não há problema nisso, não há mal nenhum em ter o cabelo crespo, afinal, sou descendente de negros. Sério? Nunca tinha pensado nisso… mas sim… pai negro, avô negro, avó negra, tias negras…
Nunca me achei bonita. Não conseguia me olhar no espelho em público. Achava aquela imagem nada agradável. Na verdade, não me reconhecia. Não entendia o que acontecia comigo. Mas depois que assumi a cabeleireira crespa, percebi algo de diferente na minha imagem no espelho, agora me reconhecia de verdade.
Sim, a cor da minha pele é mais clara. Mas todo o resto aponta que eu sou negra. Olhei no espelho e já tinha trinta anos. Fui me matricular novamente na universidade, preenchendo os formulários e a fatídica pergunta foi feita: – Como você se identifica? Eu respondi, com toda certeza que poderia ter nesse mundo:
– Negra.