Porque o cabelo importa

Foto Maria Estrázulas, fevereiro 2021

Eu lembro do dia em que descobri que era “diferente”. Eu tinha 7 anos e estava na segunda série, em um colégio religioso de Porto Alegre. Era a única menina negra da sala de aula. Como, aliás, segui sendo quase sempre até a universidade. Eu não me recordo bem o que aconteceu. Se vi algo, se foi alguma coisa que me disseram. Só lembro que eu fiquei muito, muito triste. Uma sensação dolorosa de inadequação me atingiu em cheio. Fui para a fila da minha turma, na volta do recreio, chorando. Então uma amiguinha veio me perguntar o que houve e eu contei. Ela me abraçou e procurou me consolar. Me disse algo como “não fica assim, porque você nem é tão preta, e o cabelo, prendendo, dá para disfarçar”. É incrível como essa memória volta de tempos em tempos. É incrível que eu já não lembre o que me fez chorar, mas jamais tenha esquecido o conselho que ela me deu. Porque, sim, era um amoroso conselho de amiga. Ao qual, ao longo da minha vida, eu recorri diversas vezes. E foi bom eu ter pensado nisso por anos e anos, porque o sentido daquelas frases aos poucos foi se revelando para mim.

Na hora, eu não entendi bem porque as palavras de consolo da minha amiga me deixaram mais triste. Apenas senti. Hoje, eu sei o que elas significavam. Minha amiguinha, em sua inocência, quis me protege, me embranquecendo. Ela sabia o que eu estava descobrindo naquele momento: não era bom ser preto, era feio ter o cabelo encaracolado. Era sorte a minha não ter a pele tão escura, né? E poder disfarçar o cabelo, esticando bem ele. O que ela estava tentando me ensinar era a fingir que não me viam como “diferente”, fingir não ser “de cor”, fingir não ser NEGRA. O que a sociedade nos recomendava era não ter orgulho do que eu era. Eu devia fingir que não era, para ter menos problemas. Fingir ser o que não se é, entretanto, não melhora a autoestima de ninguém. E doeu mais fingir não ser, do que ser com orgulho o que eu realmente era. Embora tenham sido diversas as situações em que eu tenha me deparado exatamente com essa questão. Até o dia em que eu decidi ser o que sou.

Prender os meus cabelos bem esticadinhos realmente foi o mais comum na minha infância. Eu costumava usar duas tranças grossas que às vezes eram torcidas para dentro, o que me fazia parecer uma cabritinha. Pelo menos, era isso o que me diziam. Não sei se cabritas usavam tranças, mas lembro do livro da escola onde o primeiro capítulo era ilustrado por uma cabrinha chamada Cabiró, e as tranças delas eram iguais às minhas. Outra opção era uma única trança presa para trás e eu acho que foi daí que criei o hábito de passar a mão no cabelo para conferir se os fios da frente não estavam soltando. Lembro de uma outra menina negra, filha de amigos da família. Diziam que ela parecia um solzinho porque os fios da frente soltavam e ficavam todos em pé. Eu não via aquele apelido como uma coisa muito confortável e tinha verdadeiro pavor de parecer um solzinho também. Então checava de tempos em tempos para ver se não estava acontecendo comigo. Por sorte, eu não era uma criança de correr muito por aí. Aliás, na família eu também era considerada de sorte porque o meu cabelo era o menos crespo de todos. Era ótimo ter menos trabalho para prendê-lo bem esticadinho. Sorte minha já ter nascido com parte do meu disfarce de branca prontinho.

Nessa época da vida você quase não percebe as sutilezas do preconceito. Nem você, que está sofrendo o racismo, e geralmente nem as crianças que o praticam. Na maioria das vezes, estão apenas reproduzindo aquilo que ouvem e vêem em casa. Os apelidinhos, as brincadeirinhas não são muito levados a sério e, na época em que eu era criança, eram menos ainda. Ninguém que eu me lembre falava sobre o tal racismo estrutural. Como as crianças seriam, então, instrumentalizadas para lidar com ele? Lembro de algumas crianças da minha época que saiam no tapa com seus coleguinhas racistas. Lá em casa isso não era muito bem visto. Minha mãe nos ensinou uma musiquinha para usarmos contra uns garotos da vizinhança: “Alemão batata come queijo com barata.” Esse versinho era a única defesa que tínhamos contra as coisas preconceituosas que eles nos diziam. Eu não sei se eles se lembram ainda desse xingamento, mas eu sei que os apelidinhos que nos davam ficaram bem guardados e, sem que eu me desse conta, foram moldando a minha personalidade. Nessa época eu aprendi a esconder minha tristeza sob uma máscara de deboche e a evitar o enfrentamento.

Depois da fase das tranças, as coisas se complicaram um pouco mais. Entrando na adolescência, já não cabia mais usar penteados de criança. Minhas amigas da escola mantinham longos fios lisos ou ondulados, ou seguiam os cortes de cabelo da moda, ditados pela revista Capricho. Então, minha mãe passou a alisar meu cabelo. Fui apresentada ao Henê, uma espécie de pomada preta que era cozida no fogo e depois passada nos cabelos. Era o que minha mãe usava também. Ficávamos com aquilo no cabelo por um bom tempo e, após lavados e secos, os fios ainda eram penteados com um pente de ferro quente que volta e meia escapava e queimava a testa. Não cheguei a usar muito o Henê porque logo depois surgiu uma outra possibilidade, um alisante frio chamado Wellin. Era mais caro, mas minha madrinha patrocinava. As manhãs de sábado eram destinadas a cuidar dos cabelos. O produto tinha um cheiro horrível e fazia arder o couro cabeludo. Embora não fosse quente, seus ativos químicos queimavam. No dia seguinte, as feridas produziam casquinhas na cabeça. E na segunda-feira, quando eu voltava para a escola, o cheiro do Wellin ainda não havia saído nem do cabelo nem da minha mente. Então eu procurava me sentar afastada dos colegas para que eles não sentissem. O pior de tudo é que o tal alisamento nunca resultava em um efeito natural. Os fios ficavam pesados e não balançavam. E tudo o que eu queria, na minha pré-adolescência, era ter cabelos que balançassem quando eu mexia a cabeça, assim como as minhas amigas faziam.

A adolescência, sem dúvidas, é o período da vida em que aparência passa a ter um peso sobrenatural. É quando você descobre que, por mais artifícios que use, não vai ficar “igual a elas”. Daí você começa a notar que os meninos querem justamente alguém como elas. E isso você nunca será. Talvez seja nessa fase da vida que tenha início de fato a hoje estudada solidão das mulheres negras. Ela já se mostrava bem real nas festinhas da escola onde, por coincidência, você era a única negra e a última a ser tirada para dançar. Isso acontecia com as meninas negras mesmo se, por acaso, houvesse meninos negros no lugar. Não vou entrar nesse assunto aqui, mas preciso dizer que os meninos negros também queriam dançar com aquelas meninas de longos cabelos loiros. Nessa fase eu passei da desconfiança de que eu era feia, para uma certeza interior de que isso era verdade. Certa vez um menino me disse que me achava bonita e eu me recordo exatamente no meu sorriso de sarcasmo e incredulidade. Foi na adolescência que eu passei a acreditar – não de forma consciente, mas inconscientemente, – que não era digna da admiração do sexo oposto.

Veio a faculdade de Jornalismo e eu já não queria ser escrava daquele tal de Wellin. Descobri então que eu podia cortar os cabelos bem curtinhos. Me senti um pouco mais livre, assim, mas jamais bonita. Eu nunca falei sobre isso com ninguém, mas volta e meia eu começava a deixá-lo crescer. E aí, sempre que eu me frustrava ou me sentia inadequada, resolvia cortá-lo.

Isso já não tinha a ver somente com minha insatisfação com a aparência. O cabelo tornou-se alvo de qualquer frustração mais intensa. Como se a máquina zero conseguisse me livrar dos meus problemas junto com os fios que caíam. Era um processo doloroso de autoflagelo. Eu estava me punindo por não conseguir ser aquilo que eu achava que deveria ser para me manter de acordo com as expectativas alheias. Nessa fase eu aprendi a fugir dos meus problemas e a não os encarar de frente.

A cosmetologia evoluiu, com o passar do tempo, e eu passei a me dar conta que nunca teria cabelos lisos como deveria. Então migrei para uma solução diferente. Comecei a fazer amaciamento, um processo em que você diminui o volume dos cachos. Isso era feito no salão de beleza, então não era sempre que eu podia pagar. Quando eu podia, acho que uma vez a cada três meses, saía de lá me sentindo uma princesa. O resto do tempo, era “dia de cabelo ruim”. E continuei sem coragem de deixar os fios crescerem por muito tempo. Quando eles começavam a crescer, eu passava a prendê-los bem esticadinhos. Os cabelos se tornavam secos e quebradiços, então eu cortava, num ciclo vicioso sem fim. Foi nessa época também que eu me tornei editora de Moda e Beleza do jornal onde eu trabalhava.

Não tive, naquele período, uma análise muito clara sobre o que vou dizer. Agora, olhando para trás e com muito mais bagagem a respeito, sou capaz de reconhecer a sensação. Na maior parte do tempo, eu me sentia uma verdadeira impostora por ocupar esse cargo, não sendo uma mulher dentro dos padrões de beleza impostos. Como impostora, sempre tinha muito medo de me expor. Desta forma, cada vez que eu tinha ideias ou soluções criativas no trabalho, eu primeiro precisava validá-los com colegas. Jamais ia diretamente ao meu superior apresentar a minha opinião. Em muitos momentos, procurava sócios para assumir a ideia comigo. Ou até entregava minhas ideias para outros, que acabavam levando o crédito por mim.  Assim, me tornei um ótimo soldado, mas jamais subi de patente.

Começaram a surgir no país alguns questionamentos mais fortes sobre racismo e a beleza da mulher negra. Eu também comecei a pensar mais sobre o meu próprio posicionamento, mas levou muito tempo ainda para que eu tivesse coragem de assumir meus cabelos como eles são. Somente há três anos abandonei de vez a química. Ou melhor: nem toda. Os tratamentos alisantes e amaciantes não me permitiam algo que eu sempre quis fazer: usar tons avermelhados nos fios. Então cortei o cabelo bem curto pela última vez em abril de 2017 e pintei tudo de um vermelho berrante. Depois passei a deixá-lo crescer naturalmente. Esse processo se deu paralelamente a uma mudança radical na minha vida pessoal e profissional. Aos 47 anos, foi preciso dar uma geral na cabeça para finalmente fazer as pazes com o meu cabelo e comigo. Do começo dessa história até aqui, foram mais de 40 anos, mais de quatro décadas de vida.

Você pode ainda se perguntar por que, diabos, os cabelos importam tanto. Eu diria para reler e refletir. Após cada memória há uma breve reflexão sobre os efeitos que tiveram na construção da minha identidade como mulher e como profissional. Você pode ler isso como mimimi, eu chamo de história de vida, uma pequena história real sobre a questão racial no Brasil. E, infelizmente, ela não é só minha. Estou contando tudo isso porque espero que ajude as meninas negras a descobrirem que elas jamais devem precisar parecer o que não são para serem amadas ou para conquistarem algo. Elas são lindas e inteligentes, eu também sou. Repitam isso para vocês todos os dias porque chegar à conclusão de nosso poder não nos faz donas definitivas dele. Muitas vezes há momentos em que volto ao primeiro parágrafo deste texto e me sinto a mesma garotinha feia. Resistam! Não estiquem nada que vocês não desejem esticar.

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