Eu não sou mulher negra? Sou uma mulher negra diaspórica, trabalhadora, estudante, mãe e de axé!!!

www.printest.com.br.Acesso em 18/10/2021

Eu não sou mulher negra? Sou uma mulher negra diaspórica trabalhadora afro-brasileira! Mas para deslegitimar minha ancestralidade africana me dizem que não. Como pode? Sofro discriminação cotidiana, tenho meu corpo realocado num elevador de serviço em Laranjeiras, minha subjetividade invadida e ocidentalizada ao ser letrada oficialmente. Minha voz calada ao denunciar racismos, sexismo e misoginias. Será que para ter “lugar de fala” terei que me embranquecer e ao embranquecer me violentar? Sou descendente do sequestro de África para o Brasil, que trouxeram meus ancestrais para cá, em nome da cruz e da verdade, as/os quais foram obrigados a se assimilarem pelo estupro colonial. E ainda assim, por ser produto da mestiçagem não sou considerada negra pelos meus irmãos negros. Não entendo, sofro violência pela minha cor e segundo meus irmãos negros não sou diaspórica? Então o que eu sou? Afinal, o que é ser negra/o no Brasil?

Eu não sou mulher negra? Sou uma mulher negra diaspórica trabalhadora afro-brasileira! Mas sou chamada de filha da feiticeira, por ser filha da Mãe de Santo, não posso vestir branco para as atividades diárias da vida e trabalho, sou olhada com desdém quando cubro meu ori, pois bem, lhe digo que sou filha da minha ancestralidade negra, eu sou do quilombo, sou da favela e sou do terreiro, meus heróis são os orixás que nunca riram e zombaram de mim. E não sou considerada diaspórica pelos meus irmãos negros, mas cultuo minha ancestralidade negra. Então o que eu sou? Afinal, o que é ser negra/o no Brasil?

Eu sou mulher negra? Sou uma mulher negra diaspórica trabalhadora afro-brasileira! Tenho cabelo cacheado, mas desde criança fui ensinada a alisar para ser aceita na sociedade, na escola, no trabalho, hoje posso usar meu cabelo cacheado, mas para meus irmãos negros não sou negra por não ter cabelo crespo 4C, por não ter a “negrura ideal”, ora se pode isso! Tenho fenótipo da mestiçagem brasileira. Se possuo os traços do colonizador é porque fui colonizada. Não esquecem da história do Brasil, pois sou fruto do estupro colonial. Os filhos da mestiçagem forçada também foram escravizados, também foram descritos nos anúncios de compra e venda de escravizadas/os nos jornais coloniais. E não sou considerada diaspórica pelos meus irmãos negros. Então o que eu sou? Afinal, o que é ser negra/o no Brasil?

Eu não sou mulher negra? Sou uma mulher negra diaspórica trabalhadora afro-brasileira! Mas sou parada na rua por policiais que ousam jogar o leite da minha filha fora, pensam serem drogas, sou criminalizada pelos policiais pela minha cor parda, pelo território que habito nas proximidades do complexo do alemão, mas não sou considerada diaspórica pelos meus irmãos negros, que me dizem que isso é um fato isolado, mas te pergunto como podemos considerar racismo um fato isolado, uma vez que é produção coletiva de uma sociedade colonizada pelo qual se estrutura a raça, na qual a cor da pele determina ocupações, circulações territoriais, passabilidade.

Sim, tenho maior passabilidade que irmãos retintos/as, mas sei que não tenho todos os privilégios, pois sou parda e não sou branca. Ah! Mas dizem que não sou diaspórica. Então o que eu sou? Sou uma mulher negra diaspórica trabalhadora afro-brasileira! Mas ao lutar pelo direito das mulheres pardas e pretas sou xingada “aos gritos” em público por um representante da branquidade que tentou me calar, me colocar uma “Máscara de Flandres”, e se não bastasse quis me chicotear virtualmente, pois é assim que agora fazem com os pardas/os e pretas/os – cancelamento público. Então para calar a “neguinha atrevida” disseminou mensagens virtuais nas redes sociais me irracionalizando, mas nenhuma irmã parda ou negra me defendeu e lutou comigo.

Eu não sou mulher negra? Sou uma mulher negra diaspórica trabalhadora afro-brasileira! Mas como diz o ditado “não sou para casar, mas para fornicar” sou mulata para exportação! Tenho que descolonizar meu corpo, meu útero e meu intelecto. Tenho que aprender a não permitir que violem meu corpo que foi produzido pela colonialidade e sexualizado e, ainda, provar a todo o momento que não sou animalesca – “burra” – e que tenho capacidade intelectual. Por isso que prefiro a filosofia africana, o legado de meu povo preto. Pois é, será que se fosse branca com olhos azuis, isso aconteceria? Não sou considerada mulher diaspórica? Então quem eu sou? Afinal, o que é ser negra/o no Brasil?

Eu não sou mulher negra? Sou uma mulher negra diaspórica trabalhadora afro-brasileira! Senti na pele quando me acusaram de parda “branca”, quando me julgaram como “afro conveniente”. Pois é, como podem meus irmãos negros realizarem um julgamento racial e me colocarem em um “não lugar”, apagarem meu existir diaspórico, como fizeram os colonizadores. É um pesadelo! Eu não quero acreditar, mas é verdade – um pesadelo colonial – assim sendo, prefiro enfrentar a realidade e digo: sou filha da política de embranquecimento que fomentou as relações inter-raciais no Brasil, pois é, sou fruto do racismo brasileiro que quis apagar negras/os da sua história, mas que sobreviveram por meio das lutas empreendidas por várias gerações, pois é meus ancestrais negros não mediram a cor da pele, lutaram por todas/os que foram colonizadas/os por meio da violência. Então quem eu sou? Afinal, o que é ser negra/o no Brasil?

Eu não sou mulher negra? Sou uma mulher negra diaspórica trabalhadora afro-brasileira! Mas minha existência como estudante foi negada, uma professora branca disse: – você foi longe demais? Não sabe português, onde estudou? Realmente tinha dificuldades, mas qual negra/o periférica/o não tem? Como chorei, chorei muito, pensei em desistir ao ouvir que não sabia português, que não iria ser nada além de vendedora se não estudasse. Precisava daquela “atividade de ganho” para criar minha filha de dois anos. Atualmente, me pergunto por que isso aconteceu? Será por que sou branca? Diria que não! Pois bem, minha professora sabia que aquele lugar sempre fora ocupado por brancas/os que conseguiam a vaga ao passar no vestibular.  Fiz transferência externa para uma universidade pública. Éramos rotulados como “agregados” por não sermos oriundos do Vestibular, por sermos trabalhadoras/res que não tinham outra opção senão trabalhar para estudar à noite.  Em meados dos anos 2000, não tinha cotas raciais em todas as universidades públicas, não tinha representatividade, mas tinha muita luta como tem hoje para quem ousa fissurar a “branquidade”[1] real universitária.

Mas, como construir no tempo presente “Quilombos”? Ao me aquilombar me dizem que fenotipicamente não sou negra, me julgam e me segregam a um “não lugar”. Eu me pergunto? Eu lhe pergunto? São julgamentos ou discriminações? São ideias pré-concebidas ou falsos juízos de valor? Será que a universidade branca, elitista e patrimonialista conseguiu colonizar meus irmãos? Será que não enxergam a cilada do conceito de “raça” ao usarem tal conceito politicamente, como instrumento de poder. Não posso acreditar que ainda estamos colonizados. Será que estamos construindo uma “negritude embranquecida” ao ocupar espaços universitários? Ou estamos construindo um “biopoder” universitário “às avessas” ao decidirem quem tem o “defeito dar cor”? Enfim, quem são os sujeitos racializados que devem entrar na universidade pública e, por conseguinte serem financiados para sobreviver à “necropolítica” do Estado Brasileiro? Defendo que temos que enegrecer a estrutura universitária para se contrapor a essa política “necro-colonial”[2] do Estado Brasileiro. Apoio ter mais negras/os retintas/os na universidade pública, pois sofrem mais os efeitos dessa política “necro-colonial”, mas os pardos também morrem, vide que “Marielle Franco e Ágata Cristina”[3] não eram retintas, mas sim negras de pele clara e diaspóricas. Portanto, não podemos esquecer que o chicote que açoita pretas/os retintas/os, também chicoteia pretas/os de pele clara que possuem traços da miscigenação. Então será que vamos fazer igual o Estado, decidir quem deve morrer ou viver? Afinal, o que é ser negra/o no Brasil?

Eu não sou mulher negra? Sou uma mulher negra diaspórica trabalhadora afro-brasileira! Sou repreendida dizendo que deveria ter limpado o banheiro! Digo que vou fazer ações externas e sou interpelada “em qual motel”? Sou acusada de possuir um “ego grande”, ser “narcísica” e de fazer figuração porque aceitei ser gestora. É um absurdo! Enfim, mulher preta não pode fazer nada! Quando faz não é trabalho? Sim, demorei a acreditar que não me aceitavam por conta do “defeito de cor”, como nomeia a escritora Ana Maria Gonçalves. E, ainda que nunca iriam aceitar minha presença, ideias ou atos. Não promoviam hostilidades com representações brancas, mas com negras/os atrevidas/os todo dia, por que será? Mas, o que me espantou foi o pseudo-antirracismo daqueles que dizem ser antirracistas, mas se omitem diante do racismo cotidiano sofrido pela diáspora. Afinal, o que é ser negro (a) letrado no Brasil? É estar disposto a usar uma “Máscara de Flandres” para ser aceito?

Sofro racismo linguístico ao falar meu “pretuguês”, como diz Lélia Gonzalez (1979) falo “framengo”, falo “probrema”. Ah! Os brancos/as já me mandaram várias vezes fazer fonoaudiologia, mas não tem jeito, a marca da diáspora[4] está no meu corpo, na minha linguagem e no meu “pretuguês”. Não adianta falaram para mim, como já ouvi muito, não fale essas palavras menina! Pois não sabe falar, pois bem, afirmo que sei falar sim! Falarei! Pois, cansei de me enquadrar nesse saber colonial e ocidentalizado que me afasta das minhas raízes, posso colocar uma nota de rodapé na minha fala e dizer a origem do meu “pretuguês”, logo, não preciso aniquilar minhas marcas para ser aceita na “branquidade” real universitária, prefiro descolonizar a língua.

Eu não sou mulher negra? Sou uma mulher negra diaspórica trabalhadora afro-brasileira! Minha negritude é vivida, meu quilombo é o terreiro, meus orixás são meus heróis desde criança e luto pelos direitos de meus irmãos diaspóricos/as. Minha luta é antirracista, anticolonial, antiproibicionista e antigenocida. É contra o “racismo estrutural” que me toca a face todo dia Contudo, sei que a luta é alienada, pois a diáspora afro-brasileira ao dizer “logo penso, existo” nas universidades públicas não está imune das máscaras brancas que nos colonizam, pelo contrário, sua colocação é impositiva e inegociável. Portanto, a construção de políticas raciais que classificam a diáspora em nome da raça, é parte integrante da agenda liberal e, portanto, mimetizam uma “negritude embranquecida” que não implode com a raça e nem com as estruturas coloniais que estruturam o racismo.  Enquanto não pudermos exercer “negritudes pluriversais” no interior da universidade pública, bem como constituir as bases para a implantação da epistemologia africana nos currículos acadêmicos não estaremos livres.

Sinto dizer que a educação eurocêntrica é do colonizador, não nos emancipa das “colonialidades”, pelo contrário, nos potencializa a sermos “pequenos burgueses racializados” como nos ensinou Martinho da Vila. A universidade pública nos coloniza e nos racializa para obtermos diplomas, não apreendem o real e o concreto do que é ser negra/o no Brasil. A tarefa é nossa em descolonizar as universidades públicas e colocar nos currículos a filosofia diaspórica e africana.  Enfim, é triste perceber que o colonialismo travestido de “colonialidades” estrutura racismos e nos imputa as dores coloniais ancestrais, ora por meio da violência, ora por meio da burocracia e meritocracia, ora pelo aparato assistencial e penal, ora pelo sistema de justiça que controla a “vida e a morte” das/os diaspóricas/os pobres que transitam da Periferia Negra à Universidade Pública, que reflete as marcas estruturais racistas, colonialistas e sexistas da sociedade brasileira. Mas, o tempo há de virar! Há de vir o pôr do sol! Para que a história possa ser mudada e a universidade pública seja reconstruída como a “casa da vida”, “casa de Maat”, na qual as mãos pretas e pardas que financiaram sua construção pelo trabalho compulsório forçado sejam respeitadas e valorizadas.

 

Referências Bibliográficas

CARONE, I; BENTO, M. A. (orgs.). Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2002.

CÉSAIRE, A. O discurso sobre o colonialismo. Lisboa: Sá Costa, 1978.

GONZALEZ, L. A juventude negra brasileira e a questão do desemprego. Resumo apresentado na Segunda Conferência Anual do African Heritage Studies Association. April 26-29, 1979. Painel sobre ‘The Political Economy of Structural Unemployment in the Black Community’. Pittsburgh: 28 de abril de 1979.

HENRIQUES, C. Racismo colonial: trabalho e formação profissional. Ed.Mórula: Rio de Janeiro,2021.

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE). Dados do Informativo “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil”. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/25844-desigualdades-sociais-por-cor-ou-raca.html?=&t=sobre Acesso em 04/01/2021.

MBEMBE, A. Necropolítica. São Paulo: N-1 edições, 2018.

MUNANGA, K. Negritude, usos e sentidos. — 2. ed — São Paulo: Ática, 1988.

MORTARI, Claudia. Introdução aos estudos africanos e da diáspora. Florianópolis: DIOESC, UDESC, 2015.

[1]O termo “branquidade” (WARE, 2004) expressa a relação de poder e dominação dos brancos sobre os negros. Na presente pesquisa não utilizaremos o termo “branquitude” (BENTO, 2002), pois está associado ao termo “negritude”, a qual surge como um movimento de reparação aos valores culturais e individuais do negro, além de um forte propulsionador da descolonização da África (MUNANGA, 1988; CÉSAIRE, 1978).  Compreendemos a popularização do uso do termo “branquitude” como uma imagem simbólica da dominação branca, contudo semióticamente diferente.

[2] Nomeamos a experiência brasileira da “necropolítica” (MBEMBE, 2018) como a política “necro-colonial” do Estado Brasileiro, pois gesta “colonialidades de morte” para negras/os diaspóricas/os afro-brasileiras/os.

[3]Marielle Franco, socióloga brasileira, era vereadora negra não retinta mais votada nas eleições de 2017, era filiada ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), foi criada no complexo da maré – Rio de Janeiro, iniciou sua vida política em 2000, foi assessora do parlamentar Marcelo Freixo (PSOL), foi morta com 4 tiros na noite de 14 de março de 2018 num atentado que também vitimou seu motorista Anderson Nunes, no Centro do Rio de Janeiro. O crime ainda está em investigação pela polícia federal. Ághata Cristina, estudante de 8 anos, menina negra não retinta, moradora do complexo do alemão, foi morta por tiros no complexo do alemão na noite de 20 de setembro de 2019, quando estava numa Kombi na companhia da responsável. O motorista da Kombi e moradores relatam que os tiros partiram da polícia, o que a perícia confirmou em 2020.

[4] A diáspora é aqui entendida como o sequestro e o cárcere sócio-racial que foi interpretado pelos colonizadores europeus aos povos africanos que foram violentamente desterrados e escravizados em várias partes do mundo, constituindo assim por meio do sequestro, do cárcere e da fragmentação cultural a assimilação forçada a empresa colonial capitalista. Por conseguinte, concebemos as mulheres diaspóricas trabalhadoras afro-brasileiras como o Povo Negro no Brasil, que é constituída por corpos dissidentes com variações de cor e fenótipos produzidos pela mestiçagem brasileira (MORTARI, 2015).

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