Da violência de gênero, sexual e racial às violências institucionais: a outra face da legislação socioassistencial brasileira

Figura da Anastácia Bantu com a Máscara de Flandres https://www.centroanastacia.com/index.php/home/escravaanastacia

O presente artigo visa refletir sobre as expressões da violência de gênero e racial na legislação socioassistencial brasileira, em especial, na Lei Maria da Penha – Lei 11.340/2006, que instituiu mecanismos para coibir a violência doméstica, sexual e familiar contra a mulher, bem como no Estatuto da Igualdade Racial – Lei Nº 12.288/10, que preconiza para a população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica.

A princípio tais legislações são participes de um sistema de proteção social que visa prevenir e coibir a violência de gênero e racial na sociedade brasileira, contudo no cotidiano institucional verificamos a aplicabilidade restrita dessas leis infraconstitucionais, haja vista que as mulheres negras e pobres das periferias urbanas da região sudeste, especificadamente do Rio de Janeiro, não podem denunciar os crimes de gênero e crimes raciais, leia-se também o racismo religioso, devido a residirem em áreas dominadas por facções criminosas e ou milícias, as quais proíbem que as mulheres vitimadas por tais violências procurem as delegacias especializadas no combate à violência de gênero e racial.

Tal interdito pronunciado pelas facções criminosas e ou milícias no Município do Rio de Janeiro, é ilegal, mas se torna legitimo na medida em que as autoridades municipais e estaduais se eximem em intervir nesses territórios, bem como não promovem um projeto de proteção social baseado nos direitos humanos que possa de fato assegurar a denúncia das violências sexuais, de gênero e racial, bem como a execução de medidas protetivas e a inserção em casas-abrigo para essas mulheres pobres, negras e trabalhadoras das periferias dos grandes centros urbanos que também são vitimadas pela violência estatal. Não obstante, a legislação que resguarda a colocação em casas-abrigos não permite a convivência com filhos adolescentes maiores de 14 anos, o que também faz com que as mulheres negras das periferias urbanas brasileiras sofram duplamente com a violência que vem da violação do corpo e dos afetos, bem como a violação do afeto construído com seus filhos.

A CULTURA DA VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES NEGRAS: o feminicídio negro

A violência contra as mulheres negras na sociedade capitalista é basilar das relações sociais de produção, visto que os corpos negros femininos sempre foram utilizados para a extração de riqueza, seja na produção direta dos insumos agrícolas, seja na produção de condições objetivas para a reprodução social das famílias abastadas. Assim sendo, desde a escravidão se reproduz uma cultura de violência contra as mulheres negras, na qual se é permitido várias atrocidades em nome do Estado, em fim em nome do bem-estar-coletivo, desde a submissão forçada ao trabalho braçal até a não oferta de políticas públicas de qualidade, como por exemplo, saúde, educação, moradia e segurança.

Nesse bojo, se constrói o feminicídio das mulheres, mas de modo exponencial das mulheres negras, pois além de serem vítimas da violência doméstica, psicológica e institucional, são vítimas do racismo e da violência urbana que mata seus filhos negros, os quais são acusados de auto de resistência enquanto tentam sobreviver a inúmeras faltas, dentre as quais, uma educação de qualidade. Segundo os dados da Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180), relativos ao ano de 2013, 59,4% dos registros de violência doméstica tinham como vítimas mulheres negras. Contudo, sabemos que estes dados não revelam a totalidade da violência e racismo que acometem tais sujeitos no cotidiano das grandes cidades, pois muitas vítimas não procuram nem as instituições de saúde, nem tampouco os órgãos de segurança pública, em virtude de residirem em locais conflagrados pelo tráfico ou milícia.   

Ademais, o “Dossiê Mulher 2015[1], do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, aponta que 56,8% das vítimas dos estupros registrados no Estado em 2014 eram negras. Ainda que, 62,2% dos homicídios de mulheres vitimaram pretas (19,3%) e pardas (42,9%), isso revela o abuso de poder sobre os corpos negros tão hipersexualizados pela mídia e cultura brasileira. Tal cenário nos revela que é preciso que o Estado promova ações intermitentes contra a violência doméstica e o racismo institucional que assola a trajetória de vida das mulheres negras, dentre as medidas acreditamos que deva contemplar ações de ethos cultural, como campanhas e ações sociais que promovam a socialização de informações, o acesso à direitos sociais e as políticas públicas, a reversão das práticas vexatórias que são submetidas as mulheres negras nas instituições prisionais, nos hospitais públicos, nas maternidades, cuja práticas são produto da violência institucional e racismo institucional. Enfim, sem a mudança de cultura do açoite não há libertação para as mulheres negras que são vítimas do abuso de poder da Sociedade, do Estado e das famílias.

Considerações Finais

A construção inconclusa da cidadania feminina negra por parte do estado, bem como a conivência com a violência institucional contra os negros subsidiou ao longo dos séculos a violência contra as mulheres negras no Brasil, quer seja no lar (âmbito privado) e nos locais aonde não há gerencia do Estado – nas favelas. A cultura da violência e da tortura contra as mulheres negras que se rebelam contra o instituído historicamente – o hábito de servir materialmente e sexualmente – ainda forja a subjetividade da branquitude que tem acesso ao poder e os espaços decisórios, o que incide na construção de leis socioassistenciais segregacionistas, que não protegem de fato as mulheres negras da violência de gênero, sexual e racial.

Na contraface desse processo temos nas letras das músicas populares a violência sentida e vivida pelas mulheres negras nos territórios periféricos – a dor psíquica-físico-social da violência racial sexual e doméstica que encarcera as mulheres negras no hospício/manicômio e ou em desertos áridos que não frutificam afetos e habitam a solidão.  Na música “se largar o freio”[2] remete a reificação do lugar das mulheres negras no ambiente doméstico, um não lugar, no qual não possuem direitos, no qual os homens podem punir, ou seja, largar o “freio”, caso ela não se enquadre na sua função – empregada doméstica”, aquela que lava, passa e cozinha e ainda deve servir seu companheiro.

A pia tá cheia de louça / O banheiro parece que é de botequim / A roupa toda amarrotada / E você nem parece que gosta de mim / A casa tá desarrumada / E nem uma vassoura tu passa no chão / Meus dedos estão se colando / De tanta gordura que tem no fogão / Se eu largar o freio / Você não vai me ver mais / Se eu largar o freio / Vai ver do que sou capaz (PÉRICLES)

Já aquelas mulheres que ousam romper com o invólucro da servidão material/sexual são punidas, por reivindicarem sua humanidade e protestarem contra o uso de deus corpos como objeto de exploração doméstica/sexual, quando ousam romper com o silêncio das suas dores, violências, desejos e pulsões são  tidas como “loucas” como é explicitado na música “piranha”[3], a qual menciona que as mulheres – as “piranhas” merecem ser presas na “colônia”, que é uma referência à Colônia Juliano Moreira, um hospital psiquiátrico no Rio de Janeiro, no qual eram internados negras/os pobres, que desde a sua fundação até o final da década de 1990, tinham suas cabeças raspadas ao serem internadas/os e até lobotomizados. Esse processo só se reverteu nos anos 2000, fruto da luta dos movimentos sociais e antimanicomiais.

Eu só sei que a mulher que engana o homem / Merece ser presa na colônia / Orelha cortada, cabeça raspada / Carregando pedra pra tomar vergonha / Tá ouvindo, piranha? (BEZERRA DA SILVA)

As práticas sociais baseadas na cultura da violência e do autoritarismo se espraiam da cultura institucional para a realidade periférica. O lugar construído socialmente e institucionalmente para as mulheres negras não é o lugar de fala, logo, não podemos requerer na periferia outras práticas, a não ser aquelas historicamente mimetizadas pelo poder instituído.O tráfico de drogas também raspa a cabeça das mulheres que ousam largar o companheiro que é traficante, ou até mesmo, as matam se tentam construir a vida com outra pessoa. Assim sendo, precisamos falar da construção dessa cidadania inconclusa para as mulheres negras, as quais não são vistas como pessoas detentoras de direitos, nem mesmo com a instituição da Lei Maria da Penha e com o Estatuto da Igualdade Racial, não são público alvo das campanhas midiáticas contra a violência racial e doméstica, nem das políticas assistenciais protetivas do Estado. Inclusive, quando que tem seus filhos mortos pelo tráfico de drogas e pelo estado, quer seja pelo tiro dos caveirões, quer seja pelo auto de resistência são culpabilizadas pela morte e por cultuarem o luto como uma dor social”, para a qual constroem “cuidados paliativos” como a construção de coletivos de mulheres negras como as “mães de Manguinhos” e as “mães do Complexo do Alemão”, ambas comunidades da zona norte do Rio de Janeiro.

Assim sendo, como assegurar a cidadania para as mulheres negras no Brasil? Em Como os movimentos feministas negras e mães mulheristas negras podem colaborar para a visibilidade das demandas das mulheres negras, preteridas historicamente pelo poder público? Essas perguntas nortearam o processo de construção desse artigo que objetivou refletir o conceito de “cidadania inconclusa”, a sua configuração no cenário brasileiro, bem como as lutas empreendidas pelas mulheres negras para o acesso aos direitos civis, políticos e sociais, pois a cidadania no Brasil ainda se constitui como um privilégio de “poucos” e um atributo desejado por “muitos”.

Referências Bibliográficas 

CHAUÍ, Marilena. Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária. In: CHAUÍ, Marilena & Rocha, André (Orgs). Manifestações ideológicas do autoritarismo brasileiro. Belo Horizonte: Autêntica; Editora Fundação Perseu Abramo, 2014 (Escritos de Marilene Chauí).

GELÉDES. O que é racismo. Disponível em: https://www.geledes.org.br/tag/racismo-no-brasil. Acesso em 14/05/2020.

INSTITUTO DE PESQUISAS ECONÔMICAS APLICADAS (IPEA). Dossiê mulheres negras: retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil. Marcondes, Mariana M. [et al.].- Brasília : IPEA, 2013. Link : www.ipea.gov.br. Acesso em 15/03/2020

[1]Link: http://arquivos.proderj.rj.gov.br/isp_imagens/uploads/DossieMulher2019.pdf. Acesso em 08/01/2020.

[2] Link: https://www.letras.mus.br/pericles/se-eu-largar-o-freio/. Acesso em 09/09/2020.

[3] Link: https://www.letras.mus.br/bezerra-da-silva/720215/. Acesso em 08/09/2020.

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