Mapa do Século XVI
Os relatos dos viajantes em tempos mais ou menos coloniais nem sempre são coincidentes quando se trata de reportar, por exemplo, a crueldade do escravismo no Brasil. Alguns autores preferem começar seus escritos mencionando terem testemunhado poucos episódios de tortura e de açoitamento ordenados ou praticados pelos senhores e que, no geral, relatam eles, os negros até levavam uma vida menos sofrida do que aquela que os estrangeiros em visita esperavam encontrar. Ao mesmo tempo os viajantes tendem a observar que, sim – e não estavam a negar –, havia histórias de senhores cruéis evocadas e acontecidas aqui e acolá, isto é, em outros locais, mas que eles, os viajantes, não teriam testemunhado nada parecido.
Contudo, seria faltar com a verdade afirmar que os viajantes consideravam os castigos infligidos aos negros como acontecimentos esporádicos. Por outro lado, o quadro pintado por muitos desses narradores tem a propensão de fazer menos intolerável o sistema de punição e recompensa da escravidão. É como se muitos desses viajantes estivessem bem mais preocupados em não ofender seus patrocinadores, ou seja, os senhores ou o poder político-econômico do tempo, do que observar o quadro em detalhe e, ainda, do ponto do vista do escravo. Entretanto essa ideia soa fora do lugar, já que quase todos os relatos indicam uma concordância com a escravidão, porque os negros, de acordo com os textos desses viajantes, continuam a ser representados ou definidos em suas análises como selvagens e, portanto, merecedores de um tratamento mais severo sempre que as circunstâncias assim o exigissem.
Luiz da Câmara Cascudo ao prefaciar Viagens ao Nordeste do Brasil, de Henry Koster, caracteriza ou apresenta sumariamente os tipos de viajantes que passaram pelo país durante o período escravista, bem como os interesses e compromissos que moviam esses sujeitos (alguns deles intelectuais, cientistas e artistas) a realizar tais périplos. Para marcar a diferença de Henry Koster (um viajante desinteressado) em relação aos seus iguais, Câmara Cascudo diz que certos viajantes passavam pelo Brasil a caça de anedotas e buscando o pitoresco; outros se autoidentificavam como naturalistas, isto é, estudantes da fauna, da flora e de aspectos geológicos do lugar, cumprindo uma missão patrocinada que, portanto, devia obedecer a critérios técnicos e ao compromisso de retorno ao país natal munidos de dados consistentes sobre o campo observado; enfim, os viajantes se aventuravam nessas expedições com objetivos bem determinados, já que não se tratava de mera aventura humanista.
Os interesses e os objetivos (geralmente de caráter comercial ou prospectivos de negócios vindouros), previamente estabelecidos para as viagens, acabavam determinando o teor dos relatos ou dos relatórios a respeito da cultura e da sociedade que estava sob a inspeção desses intelectuais ou naturalistas.
Já em outro relato, o viajante Carl Schlichthorst (militar, engenheiro e escritor alemão que chegou ao Brasil em 1825) avança considerações sobre o escravo e sua condição de commodity. A força produtiva do africano escravizado é materializada em seu corpo como um bem em estado bruto, um produto cuja circulação no mercado externo será interrompida (a Inglaterra determina o fim do tráfico negreiro) dando oportunidade de lucro aos negociantes de escravos no Brasil. Diante da realidade inevitável do fim do tráfico negreiro, todos que possuíssem grandes estoques de negros escravizados estavam em vantagem no mercado interno. Comprar escravos era um investimento com retorno certo. Esse cenário sombrio de negócios e de trocas comerciais de corpos de seres humanos é comentado pelo viajante com uma indiferença e uma naturalidade muito adequadas à lógica dos processos econômicos. Não há sinal de compaixão.
Em outro momento, Carl Schlichthorst nos revela que alguns recintos onde os escravos eram depositados apresentavam condições muito boas e apropriadas a esse tipo de gente. Relata que diversos armazéns de escravos eram geralmente muito limpos, de chão varrido e lavado várias vezes por dia. Sem perder de vista suas convencionais habilidades literárias, o viajante descreve: “A fresca brisa do mar sopra por toda parte, de maneira que, mesmo quando cheio de negros [determinado armazém], pouco se sente o mau cheiro que caracteriza as cadeias e casas de correção da Europa”. O lugar é limpo, saneado, mas lembra ao estrangeiro os cárceres de seu país de origem. A percepção de que os escravos têm um tratamento nem tão desumano entra em contradição com a lembrança do estrangeiro, pois o local onde os negros – que não eram necessariamente criminosos – se encontram “depositados” tem semelhança com uma casa de correção, instituição que, por definição, abriga criminosos condenados a cumprir penas decorrentes de seus delitos.
Alguns viajantes chegam a elogiar as boas condições dos navios negreiros usados para o transporte dos africanos capturados. Consta num desses relatos que um barco que na Europa receberia trezentos passageiros, transportava da África quatrocentos negros, portanto, a notícia de que os negros iam amontoados nos navios negreiros era um pouco exagerada. O relato explicava que os negros eram cuidados com grande zelo, que médicos cuidavam de sua saúde física e um capelão de suas almas. Por fim, o viajante escreve que todos eram batizados antes do embarque e, com ferro quente, marcados no peito com uma pequenina cruz, pois assim todos se tornavam cristãos novos. A Igreja concedendo sua Graça aos africanos escravizados.
É constrangedor como o viajante lança mão de uma argumentação falaciosa na medida em que, para negar a experiência desumana do tráfico negreiro, compara passageiros que viajam por livre vontade e em condições, por certo, muito melhores (inclusive porque em número menor), com um contingente bem maior de pessoas que são arrancadas de seu lugar e levadas à força para um destino que lhes é inteiramente desconhecido e, por seu turno, em condições bastante insalubres. O relato é enviesado, porém não há como disfarçar a compreensão francamente assimétrica entre as duas experiências. Em um barco há passageiros. Em outro, negros.