A solidão da mãe preta

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A solidão da mãe preta

Recentemente estive na Defensoria Pública da minha cidade. Antes de entrar no prédio, esperei ao lado de algumas mulheres que conversavam sobre suas crianças, os pais biológicos e suas barrigas gestantes … e a queixa era a mesma: os pais “repentinamente” não pagavam a pensão, não falavam sobre isso, e não tinham contato com elas.

Mas aquela conversa parecia mesmo uma introdução ao grande ato que eu assistiria logo mais… Uma mãe acuada pela presunção de um desses genitores. Ele falava alto, esbravejava e batia no peito o seu grande papel de quem “paga a pensão certinho”, e ela ali… Ela que chegou tão segura e forte, começou a falar baixo, cedendo a todos os mandos e desmandos daquele “super pai”.

Sozinhas.

Eram assim que estavam aquelas mulheres. Nenhuma companhia seria capaz de suprir a ausência que se instaurou. Quando se é uma mãe, e principalmente uma mãe preta, ela só pode contar consigo mesma. Na maioria das vezes, não há pais, nem companheiros, nem amigos ou amigas… é apenas a mulher e sua criança. E em parte dos casos é mais do que suficiente.

Que solidão é essa?

Quando nos remetemos à solidão, pensemos não o corpo só. Mas em todas as decisões solo, e dificuldades em silêncio e a ausência de uma escuta atenta e amiga. A falta de apoio financeiro e até mesmo de segurança física. Dessa solidão, não do lugar na cama, mas dessa perspectiva imensa em que se encontra uma mulher que não foi preparada para sustentar um lar e que precisa tomar em suas mãos, o lugar de “dona de sua própria vida”, de uma hora para outra.

O modo como nós mulheres somos educadas, na maioria das vezes, nos impede de nos sentirmos seguras e aptas ao controle de projetos e de nossos próprios desejos. Nessa sociedade machista em que nos estabelecemos há barreiras muito sutis entre o que é socialmente aceito e o que é rejeitado. Então após um abandono (e quem sabe, um segundo abandono) há mulheres que foram tão afastadas desse lugar de “donas de suas vidas”, que ir ao mercado e realizar pequenas contas, é uma tortura.

O desamparo em números

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 61% das mães solos no Brasil são negras. Abaixo da linha de pobreza, cerca de 63% das casas são comandadas por mulheres negras com filhos de até 14 anos. Mais de 7,8 milhões de pessoas vivem em casas chefiadas por mulheres negras. E esses são apenas alguns dos números que expõem o quadro solitário dessas mulheres, que como se não bastassem todas essas dificuldades ainda têm de lidar com o racismo, o machismo e o sexismo.

Com base em todos esses dados, é possível pensar em todas as situações às quais essas mulheres e suas famílias estão expostas. De forma muito perspicaz, a Cibele da Silva Henriques, discorre em seu artigo Da violência de gênero, sexual e racial às violências institucionais: a outra face da legislação socioassistencial brasileira, sobre a violência contra a mulher negra (feminicídio negro) através de números relacionados à violência doméstica e como essas mulheres são preteridas historicamente pelo poder público.

Nessa perspectiva, podemos pensar que a violência contra a mulher negra é em dada medida institucionalizada pelo modo como a nossa sociedade é estruturada?

Infelizmente, sim! Todos os caminhos conduzem o pensamento para entender que a sociedade capitalista em que está estabelecida essa sociedade se constitui nesses moldes, em que a mulher que se torna mãe, e é abandonada em sua maioria, pelos genitores de seus filhos e suas filhas, são tratadas não como vítimas desses comportamentos abusivos, mas como responsáveis por suas próprias escolhas. E nesse momento percebe-se instantaneamente o que significa culpabilização da vítima.

Os efeitos da solidão

É aqui que nos deparamos com os danos psicológicos, os problemas sociais embutidos, e a degradação financeira. Nestes parâmetros, a vulnerabilidade se estende da mãe preta chefe de família para seus filhos e sem uma rede de apoio forte, o abandono sentido e vivenciado se propaga quando não há o alimento na mesa, não há mais energia elétrica por falta de pagamento ou sendo vítima de algum desastre natural, ela não sabe a quem recorrer ou para onde ir.

Nesse momento, lembro da história da grande escritora-poeta Carolina Maria de Jesus, que sustentou seus três filhos como catadora de papel, na extinta favela do Canindé em São Paulo, às margens do Rio Tietê, sujeita a todos os tipos de abandono e descaso social, e apesar de todas essas circunstâncias, escrevia. E entendo que no processo de escrita, Carolina compartilhava naquelas linhas seu sofrimento e suas culpas.

A solidão não vem só. Ela também traz culpa à tiracolo. Uma culpa sem nome e sem muitas explicações, mas que assola toda aquela que se vê em situação de desamparo e desespero, se indigna e se questiona sobre os motivos de está presa em situações como as já descritas acima. A mulher preta está só, e não há nada de belo ou forte nisso.

Dizer que ela é uma guerreira, não melhora nenhuma situação e nem normaliza a condição. Pelo contrário, reafirma as estruturas sociais condescendentes com os que abandonam e ampliam o abismo social no qual essas mulheres se encontram e se mantém com um status de quem venceu, mas que na verdade sobreviveu.

Referências:

https://www.criaparaomundo.com.br/post/a-m%C3%A3e-solo-negra-luta-contra-o-racismo-machismo-e-o-sexismo

https://www.generonumero.media/retrato-das-maes-solo-na-pandemia/

http://jornalcobaia.com.br/reportagens/maes-solos-negras-enfrentam-maior-dificuldade-financeira/

https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/03/06/maes-negras-e-solteiras-sofrem-mais-com-falta-de-saneamento-e-carencias-nas-casas.ghtml

** Este artigo é de autoria de colaboradores do PORTAL BAOBABE e não representa ideias ou opiniões do veículo. O Portal Baobabe oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.