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Sempre que o sistema de prestigiamentos (com seus correlatos silenciamentos) da brancocracia se põe a fazer elogios desmedidos a respeito do trabalho ou da personalidade deste ou daquele negro, me preparo para o pior.
Não me venham falar em baixa estima, nem que estou na defensiva ou coisa parecida. O ponto aqui é bem outro. Segundo Nietzsche “o comentário demasiadamente elogioso produz mais indiscrições que a censura”. As louvações, nestes casos, têm fundo culposo; se efetivam sem que possamos lhes prever as consequências.
Desvelam a imprudente face do preconceito. Para compensar toda uma série de episódios aniquiladores do ânimo e da vida de muitas personalidades negras fundamentais para a nossa cultura, o senso comum da negação do racismo carrega nas tintas da apologia purgativa em relação àqueles que parecem ter vivido vidas que poderiam ter sido, mas que não foram.
Parodiando o adágio relativo à vingança, pode-se dizer que tal espécie de elogio é um prato que se oferece frio ao seu maior interessado. Por essa razão, Cruz e Sousa é o Dante negro; Leônidas da Silva, o Diamante Negro, Elizeth é a Divina, e assim por diante.
A estúpida invisibilidade – suportada por interdições, óbices e imposturas de apelo meritocrático –, a que são submetidos muitos criadores negros no Brasil, sobretudo aqueles “fujões”, isto é, que não sucumbem ao modelo ou que não cumprem o esperado, está representada num episódio do percurso poético de Cruz e Sousa. Trata-se da epígrafe baudelairiana aplicada pelo poeta ao pórtico do seu livro Broquéis (1893). Vejamo-la:
Senhor meu Deus! conceda-me a graça de produzir alguns belos versos que me provem que não sou o último dos homens, que não sou inferior aos que desprezo.[2].
A citação, além de situar o simbolista brasileiro dentro de um determinado círculo estético de (auto) referências, e de pô-lo em relação com o continuum da tradição poética, representa, a uma só vez, o inextrincável dilema da esterilidade e da criação, e o dilema e a oportunidade de um trajeto poético que se inaugura. Isto é, na remissão ao poeta francês, Cruz e Sousa corre o risco, comum em tal situação, de fazer mera reverência ou apologia.
Entretanto, apontar para a obra do autor de Les fleurs du mal (as flores do mal), abre-lhe a oportunidade de um confronto inventivo-comparativo entre a sua voz e um texto que já começava, àquela altura, não obstante as polêmicas que envolveram sua publicação, a se consagrar como peça canônica.
O poeta da Ilha do Desterro, por conta das correspondências complexas entre vida e arte, observáveis em sua obra, se apropria de tal maneira do fragmento de Charles Baudelaire e o “veste” tão bem que, por pouco, não chegamos à conclusão de que Baudelaire não teria o direito de ser o seu autor.
A epígrafe perece ter sido feita sob medida à experiência ético-estética de Cruz e Sousa, um poeta que precisou provar durante toda a sua vida – diga-se, mais aos outros do que a si mesmo -, que não era le dernier des hommes (o último dos homens). Na voz de Baudelaire, aquelas palavras sabem a sentimentais frivolidades pequeno-burguesas.
Em virtude dessas e de outras especulações, evoco aqui o grande filme Assalto ao trem pagador (1962), de Roberto Farias, obra fílmica que diz muito sobre essa condenação à desvantagem que nós negros experimentamos dentro de uma organização social hipocritamente tolerante.
Resumo do filme: Grilo Peru (cara “cor de fiambre”, rosto “cor de peru frio”), é um inteligente criminoso da cidade que diz trabalhar para um chefão chamado Engenheiro (variante às avessas do white savior) que tem um plano para um assalto espetacular que mudará suas vidas condenadas à pobreza e à marginalidade.
Grilo convence Tião Medonho, líder dos bandidos da favela, a praticar o roubo a um comboio de pagamentos. O assalto é bem-sucedido. Os criminosos combinam não gastar o dinheiro roubado antes de um ano, pois isso levantaria suspeitas.
Acontece que Grilo se dá conta de que pode ser dispensado de cumprir o pacto, pois não é favelado e tem boa aparência, ou seja, é branco. O fato desperta a ira dos demais que, por sua vez, também não se mostram tão rigorosos no cumprimento do trato. Tião Medonho entende que providências precisam ser tomadas. A quadrilha delibera pela execução de Grilo como uma espécie de corretivo exemplar com vistas a preservar a disciplina.
No momento em que o filme se revela mais carregado de significados e traumas, Grilo Peru, às portas de ser vitimado, diz a plenos pulmões que será executado não por ter rompido o trato, mas porque, de todos ali, era o único branco de olhos azuis e bonito, que tinha pinta de rico e, portando, estava autorizado a ser perdulário, a bancar o playboy e a gastar sua parte do roubo sem levantar qualquer suspeita; e que eles tinham inveja porque fediam, eram feios e se assemelhavam a macacos. Tião Medonho o executa com dois tiros à queima roupa e ordena: “Joguem o corpo dele no rio para os peixes comerem seus olhos azuis”.