Foto by Sara Bueno
Já faz um tempo que venho pensando sobre pessoas negras em processo psicoterapêutico com profissionais brancas, e fui convidada para abordar essa temática aqui. Nesta publicação falo de meu lugar como mulher e negra que faz psicoterapia há alguns anos, e também falo de meu lugar de mulher e negra e psicóloga que atende pessoas pretas.
Eu só tive duas psicólogas na vida e todas elas são brancas, e conforme eu fui me tornando negra percebi que elas não acolhiam minha negritude, não acolhiam minha inteireza, algo que é primordial na Gestalt-terapia (ambas são gestalt terapeutas). É importante enfatizar, para melhor compreensão de todxs, que a Psicologia é dividida em diferentes abordagens e cada uma possui uma forma singular de entender as pessoas.
A Gestalt-terapia é uma vertente que tem como pressuposto acolher a pessoa através de sua totalidade, não separando-a por partes, e vendo sua relação com o meio, com o contexto geográfico, socioculturtal e físico. Feito este adendo, não escrevo isso para julgar as psicólogas que passaram pela minha vida, mas para vermos que quando se atende uma pessoa negra precisamos olhá-la pensando no entrelaçamento de raça, classe e gênero (sua totalidade).
Na realidade, qualquer pessoa que vamos atender precisamos nos direcionar pensando em raça, classe, gênero, orientação sexual, e/ou se é uma pessoa com deficiência. Bom, lhes faço duas perguntas: será que existe uma forma universal de ser pessoa? É possível entrar num consultório e deixar sua negritude do lado de fora? Ou deixar sua homossexualidade no corredor esperando você sair da sessão? Obviamente que não. São partes que nos compõem e estarão sempre conosco onde quer que estejamos.
Ser pessoa negra no Brasil nos coloca num lugar social completamente diferente de ser pessoa branca, então acreditar que é possível acolher do mesmo modo essas duas formas de ser e estar no mundo é um grande equívoco. Quando uma psicóloga branca (usarei a palavra no feminino, pois a profissão é composta em sua grande maioria por profissionais mulheres) recebe uma pessoa negra no consultório é primordial ter como base conhecimentos sobre racismo, raça e gênero. Saber apenas sobre sua abordagem psicoterapêutica NÃO BASTA. E as chances de a pessoa negra sofrer racismo no espaço terapêutico são gigantescas.
Antes de tudo acredito que seja importante a profissional saber se essa pessoa negra já passou ou não pelo doloroso processo de tornar-se negra, porque se a pessoa (cliente) não passou, ela olhará para seu sofrimento de forma individualizante, culpabilizante e em desconexão com a realidade social brasileira. E o sofrimento da pessoa negra perpassa por sua condição de ser um corpo negro marcado por uma vivência de mutilação de sua identidade, então é necessário olhar como esse sofrimento se entrelaça com o racismo.
Nesse sentido, acredito que é dever ético da profissional trazer a tona o tema do racismo quando a (o) cliente ainda não consegue elaborar isso sozinha (o). Entretanto, para fazer isso é essencial que já tenha-se criado o vínculo terapêutico e a pessoa negra tenha autossuporte para entrar em contato com isso. Autossuporte significa, a grosso modo, encontrar forças internas para enfrentamento de seu sofrimento.
Por outro lado, muitas pessoas pretas que buscam psicoterapia já percorreram o caminho de se tornar negra, e já conseguem nomear seu sofrimento abordando o racismo. E a nossa parte como profissionais de saúde mental é confirmar a dor da pessoa, confirmar seu sofrimento ocasionado pelo racismo. Nós negras e negros sofremos grande desumanização por parte dessa estrutura a qual estamos inseridos, e essa desumanização nos impossibilita até mesmo de sofrer pelo racismo.
Precisamos de espaço para sofrer por isso. Pessoas negras experienciam racismo em todos os contextos pelos quais passam, e o espaço psicoterapêutico NÃO PODE SER mais um espaço de luta. Precisa ser um espaço de acolhimento, de fortalecimento de autossuporte e potencialidades, e um espaço onde a pessoa preta consiga descansar dessa realidade que a violenta e massacra.
A (o) cliente negra (o) poderá chegar no consultório de uma psicóloga branca com receio, porque crescemos vendo o branco como ameaçador, como opressor, então é imprescindível que a psicóloga branca possibilite um espaço acolhedor onde a pessoa negra sinta que ali há espaço para se falar sobre isso.
Logicamente, isto só será possível se a profissional de psicologia saiba se localizar socialmente como pessoa branca, como pessoa que desde o berço possui benefícios e privilégios por conta da cor de sua pele. Reconhecer-se dessa forma é o primeiro passo para reconhecer isso no mundo, e isso fará total diferença no andamento da terapia. É preciso reconhecer em si, para reconhecer nx outrx.
Talvez vocês estejam se perguntando se eu sou a favor de psicólogas brancas atenderem pessoas negras. Pois bem, eu, sendo uma psicóloga antirracista luto por uma sociedade e uma psicologia antirracista, sendo assim seria contraditório pensar que pessoas brancas não podem atender pessoas negras. Precisamos implicar as pessoas brancas nisso também, precisamos parar de tentar ausentar as pessoas brancas de responsabilidade frente ao racismo.
Elas podem e devem atender pessoas pretas, porque acredito que é importante olhar também para os relacionamentos inter-raciais, porém torna-se necessário tudo que já expus anteriormente. É fundamental que a pessoa negra consiga atualizar e ressignificar relacionamentos opressores com pessoas brancas, e o espaço terapêutico pode ser um lugar seguro para isso.
Atender pessoas negras não é fazer mágica, e não precisamos criar uma abordagem nova e especificamente para isso. Não é justo, muito menos ético, que profissionais continuem nos excluindo do fazer psicológico. Não é justo que tenhamos negado mais um espaço, mais um direito.
Não é justo sofrer racimo no ambiente onde vamos para curar nossas feridas. Muitas pessoas acreditam que uma pessoa branca não pode atender um (a) cliente negro (a) porque não sabe, nem nunca saberá como é sofrer e (re) existir ao racismo. Mas empatia não é sobre se colocar no lugar dx outrx como muito se fala, empatia é sobre sentir juntx, é sobre abrigar a dor, é sobre segurar as mãos daquele (a) que sofre. E se duas pessoas podem sentir juntas cria-se um espaço de potência e ampliação de ser. Já passou da hora da psicologia se descolonizar, não é mesmo?