Carolina Maria de Jesus: a exclusão e a fome como alimento para a escrita

Carolina Maria de Jesus, em São Paulo, 1961 (Divulgação)

Carolina Maria de Jesus nasceu em uma comunidade rural na cidade de Sacramento, Minas Gerais, aos 14 de março de 1914. Tornou-se escritora anos mais tarde na favela do Canindé, nos anos de 1960, data da publicação de seu primeiro livro: Quarto de despejo: diário de uma favelada.

A obra veio a ser seu livro de maior venda, com uma tiragem, já na primeira edição, de dez mil exemplares, esgotado em poucos dias. Ao final de um ano, Carolina vendeu cerca de cem mil exemplares, segundo Audálio Dantas apud Levine e Meihy (2015). A vida da escritora sempre foi marcada por muitas ausências, criada pela mãe, filha de pai boêmio, teve na figura do avô uma importante referência.

“Eu nada tenho a dizer da minha saudosa mãe. Ela era muito boa, Queria que eu estudasse para professora. […] Mas ela formou meu caráter […]” (JESUS, 2012, p.49 e 50).

Estudou apenas dois anos, no Colégio Allan Kardec – “tenho apenas dois anos de grupo escolar” (JESUS, 2012, p.16) – quando tiveram, ela e a família, de ir para Lageado, interior de Minas Gerais, local onde trabalharam como lavradores. Retornou nos anos de 1927 para Sacramento e, em função da situação financeira que encontrava sua família, partiu para Franca, São Paulo, em 1930. Lá, trabalharam, ela e a mãe, como empregadas domésticas em uma fazenda da região; mais tarde, foram ajudantes de cozinha na Santa Casa de Franca.

Em 1937, sua mãe morre, marcando fortemente a vida de Carolina, os rumos, portanto, tomam direções desconhecidas até então, à vista disso, muda-se para São Paulo onde inicia o trabalho doméstico em casas de “família”. Por conta de um diferencial que trazia da infância, do contato direto com seu avô e as letras, era culturalmente informada, sabia ler e escrever, e então era admitida em casas de pessoas importantes. Segundo Vera Eunice, filha caçula de Carolina, sua mãe trabalhava em casa de político, advogado, dentista, cada um mais importante que o outro. Por um tempo ela foi empregada de confiança para a família de uma cardiologista famoso, o dr. Zerbini. Ele fez o PRI-MEI-RO transplante de coração no Brasil, e simpatizava muito com minha mãe (LENINE e MEIHY, 2015, p.76).

Na escola vencia o preconceito diariamente, durante os dois anos de vida escolar, pois era o máximo permitido para os negros daquela época. Não tinha amigos, e em razão de ser a única negra da classe, os pais dos alunos proibiam o contato dos filhos com Carolina. Em detrimento disso, segundo Vera Eunice, sua filha mais nova, tomou as obras literárias como suas companheiras, “se afogava em livros para fugir da solidão” (LIMA, Vera E. apud LENINE e MEIHY, 2015, p.75). Dona Maria Puerta, parteira do Canindé e vizinha de Carolina, descreve a escritora como uma pessoa de bem, muito trabalhadora, honesta, com três grandes preocupações: trabalhar, educar os filhos e escrever.

Dona Carolina de Jesus também era assim. Catava lata e garrafa a manhã inteira e à noite saía com aquele sacão para juntar papel. O resto do dia ela passava escrevendo, sentada num cantinho, um tempão! Ela dizia sempre que estava escrevendo um livro para ganhar dinheiro e tirar os filhos dela da favela, mas nunca acreditamos que pudesse acontecer. […] Ela dizia assim:

“Eu vou escrever esse livro para dar uma vida melhor aos meus filhos” […] (LEVINE e MEIHY, 2015, p.130).

Nesse desejo constante que alimentava a sua fome de saber e amenizava o vazio do estômago, a autora produziu seu diário em meio à favela[3], para ela toda a dor produzida naquele espaço deveria ser denunciada. Para tanto, seu diário seria o meio pelo qual apresentaria aos moradores dos “palácios da cidade” – como era chamada a elite por ela –, a miséria da favela.

Acredita-se que, por esse motivo, sua fome não era alimentada apenas com os mantimentos os quais, por vezes, enchiam suas panelas, mas também na leitura e na escrita diária, que para ela, não deixavam de ser o suprimento necessário para viver em meio aquele cenário amarelado. Assim que se levantava pela manhã, muito antes de ir em busca do pão para os filhos, ou do dinheiro para comprar, Carolina sentava-se e escrevia. A mãe de João, José e de Vera Eunice enxergava a beleza colorida:

“Quando eu vou na cidade tenho a impressão que estou no paraizo. As casas com seus vasos de flores e cores variadas” (p. 85).

Isso demonstrava que não tinha orgulho de morar na favela e, por esse motivo, sonhava constantemente estar nas “salas de visitas e nos palácios” da cidade, no sonho as cores ganhavam destaques no seu relato. Via na escrita do seu diário uma oportunidade de ascensão – dado que, acima de tudo, sempre acreditou no poder da educação e da leitura na vida das pessoas –, desejava a partir de suas palavras denunciar o cotidiano dos favelados, esse espaço sub-humano. Para tanto, ressaltava em seus escritos que era a única que lia e escrevia de toda a vizinhança, chegando em alguns momentos a ler jornais para os moradores do Canindé, e, por conta disso, envaidecia-se:

“estou escrevendo um livro para vendê-lo. Viso com o dinheiro comprar um terreno para eu sair da favela” (JESUS, 2012, p.28).

Desse modo, traduziu os aspectos cruéis e tristes da vida dos moradores da comunidade[4] às margens do Tietê, nos idos dos anos 1950, não poupou nenhum morador e, tão pouco, ocorrências de si e do outro. Nesse mundo sem cor em que viveu, de acordo com a sua própria avaliação, Carolina, diariamente, percebia que a dor tinha cor. Ainda assim, teve forças para iniciar seu relato pessoal com sua caligrafia, a qual deixava marca dos poucos anos de escola, no entanto isso não foi uma barreira para a escritora, que chegou a um total de 35 cadernos escritos[5].

Escrever era poder perceber e sentir o mundo mais colorido, da mesma forma que desejava sua vida. Enquanto o lápis tracejava algumas palavras e os contornos tomavam vida, ela ia tecendo, de acordo com o poder que lhe fora conferido, de dizer ela por ela mesma, seguia contando a sua história; as formas e cores iam traduzindo e denunciando as dores dos residentes do Canindé.

A obra de Carolina compreendida como uma Literatura de menor valor, por ter sido escrita por uma autora marcada, predominantemente, com erros gramaticais e, sobretudo, advinda das periferias; por conseguinte, sem prestígio, fora do cânone.

A autora de Quarto de despejo recebeu apenas o necessário para um instante; sua fama acarretou lucros para a editora e, logo depois, foi levado ao esquecimento. A ânsia e a curiosidade sobre os modos de vida de uma favelada arrefecem como a mesma velocidade que despejam os indivíduos para as margens.

Logo em seguida, iniciava-se uma grande luta para a publicação de outros livros, uma vez que sua segunda obra, Casa de alvenaria (1961) não foi sucesso de vendas, não diferente daquilo que ainda ocorre hoje em dia com as produções vindas das margens, daqueles que são depositados longe dos centros da sociedade; para lá, onde despejamos todos os insumos dos cernes urbanos. Ou seja, em um processo semelhante ao de limpeza de uma casa, quando colocamos na dispensa, no quarto de despejo, aquilo que não podemos tirar de casa, mas que, de alguma forma, não deve ser visto.

A higienização das metrópoles não é um caso passado; histórica, ela ainda continua acontecendo. São Paulo, por exemplo, perpetua, como nos anos duros que Carolina viveu no Canindé, a higienizar a cidade. Literalmente jogados à margem do rio, os governantes escondem os pobres e negros da sociedade, afinal, “não seria interessante para a cidade expor a sua realidade”.

Foi nessa conjuntura nada propícia para a produção literária, que escritora demonstrou persistência diante de um quadro de miséria fora do comum – seu relato denunciou um comportamento colonial, opressor e de muita exclusão; o mesmo que perpetua a figura do colonizador, em outras palavras, aquele dominador e explorador da mão de obra do negro e do pobre.

Nesse ambiente nada promissor, muitos artistas foram construídos, inúmeras expressões foram criadas, a favela por muitas vezes foi palco e berço de grandes produções artísticas, em que o vazio do prato, diversas vezes, é preenchido com o ritmo e a poesia, da mesma forma como o batuque do samba amortece o estampido da violência.

Ainda assim, o sistema, a mídia, a elite, o centro, a metrópole, os brancos, o Estado, o capitalismo[6], sob o pensamento do opressor extermina e massacra os moradores das comunidades, fomentando à marginalização[7] do território. Desse modo, adentram suas malocas sem pedir licença, invadem seus cortiços e segregam suas comunidades.

Essa mesma violência, a qual destrói e inviabiliza qualquer possibilidade de produção cultural nas favelas, atua na contramão e passa a ser campo fértil para o surgimento e concretização de grandes produtos artísticos para toda a sociedade. Assim, a partir da publicação de Carolina, em 1960, – que desejava com seu quarto de despejo, denunciar, criticar e representar seu povo –, outras vozes emergiram e o que era silêncio passou a ser o discurso da periferia.

De modo que o retrato desses espaços e as condições em que ainda estão submetidos os residentes das favelas ganham força a partir de Quarto de despejo (1960). Ainda que o mercado editorial e o cânone institucionalizado não facilitem a circulação da Literatura produzida às margens, das vozes que (re)existem.

Da representação social da obra como a de Carolina de Jesus, bem como a da favela retratada em seus textos, nasce o desejo de explorar esse terreno, que, apesar de propenso à discriminação, também é fértil. Diante disso, e partindo do pressuposto de que há muito tempo a Literatura tem ajudado a humanidade a refletir sobre o mundo e sua realidade, torna-se, portanto, indispensável ouvir as vozes das periferias, estudá-las, compreendê-las sob a égide da Literatura Periférica[8], a qual vem se fortalecendo cada vez mais, na intenção de representar a cultura de seu povo. Nessa conjuntura, Carolina e tantos outros escritores deram e continuam dando vozes às periferias.

O conceito de Literatura Marginal foi por muitos contestado. Paulo Lins, autor de Cidade de Deus, por exemplo, que participou da primeira edição da Caros Amigos com texto solicitado por Ferréz, o fez sem saber que tal movimento traria o adjetivo de Marginal.

Independente das divergências, o fato é que Carolina justifica-se, mais apropriadamente, dentro “é de uma literatura feita por escritores oriundos de espaços ou territórios subalternos: marginalizados, oprimidos, explorados ou de diversas formas excluídos” (REYES, 2013, p.13). Nesse sentido, uma Literatura que traz consigo uma escrita marcada duas vezes pela exclusão, por ser negra e por ser periférica.

Por se tratar de outra barreira que a Literatura Periférica encontra para adentrar os espaços canônicos, o estigma da língua não institucionalizada desvalorizava a produção literária e artística das comunidades. Dessa forma, era e ainda é definido o cânone, cuja norma não permite aos subalternos falarem e tão pouco circular pelos territórios hegemônicos, visto que os subalternos não dominam suas gramáticas de poder.

Na constante tentativa de inviabilizar o acesso da periferia aos estratos sociais dominantes, a elite ergue seus muros, separando as favelas dos centros urbanos; alguns desses são simbólicos, outros, separam e protegem os condomínios de luxo. Nesse processo de resistências às produções advindas desses territórios, o lixo[9] vence, muitos por meio da música, do grafite, da Literatura, dos slams e outras manifestações fruto dos seus espaços.

De igual modo nasceu o samba, sempre tão marginalizado, e também o rap, as vozes as quais vêm da periferia estão ativas e são producentes, superando toda a resistência sob a perspectiva desse olhar que discrimina, segrega e desmotiva o sujeito autor. Diante de tantas pedras nesse caminho e pensando nas Carolinas[10] que tão discretamente denunciam, por meio de suas produções, as suas dores e as suas glórias, nasce o desejo de estudar, pesquisar esse espaço e a Literatura que ali vem sendo produzida.

Pretende-se, assim, uma aproximação de leitura da obra Diário de uma favelada como a coragem que, muitas vezes, parte da necessidade do sujeito no limite da resistência, o mesmo quando se coloca como experiência, representando, portanto, o real de dentro para fora. Os narradores, de um lado, nada performático e, de outro, autoficcional, derivam da fome e da sobrevivência, outrossim narram para esquecer a barriga vazia, bem como a violência.

 

REFERÊNCIAS:

CHARTIER & HÉBRARD. Por uma bibliografia material das escrituras ordinária: a escritura pessoal e seus suportes. In: CUNHA, Maria Teresa Santos, BASTOS Maria Helena Camara e.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. [Ed. Especial]. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. (Saraiva de Bolso).

______. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam.  São Paulo: Autores

JESUS, Carolina M. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 9ed. São Paulo: Ática, 2012.

LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Tradução de Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014).

RIBEIRO, Djamila. O que é: lugar de fala? Belo Horizonte (MG): Letramento, 2017. Arquivo Kindle.

[1]Texto retirado da Dissertação de mestrado “As vozes da periferia: Carolina e o seu quarto de despejo” – PPGLit – UFSC

[3] De acordo com as Nações Unidas, por meio da UM-HABITAT, favela é o termo que designa áreas que abrigam habitações precárias, desprovidas de regularização e serviços públicos (água tratada, esgoto, escolas, posto de saúde, entre outros). As primeiras favelas surgiram no Rio de Janeiro logo após a Guerra de Canudos e em São Paulo por volta da Segunda Guerra Mundial. Começam, no entanto, a ser mais “visíveis”, quando se expande o processo de industrialização-urbanização. A partir da década de 50, passam a ser reconhecidas como “problema”.

[4] “Na margem esquerda do rio Tietê, em uma área de 34.500 metros quadrados da Prefeitura, mais de 300 barracos se amontoavam no terreno que era conhecido como a Favela do Canindé. Fortes chuvas castigaram a cidade entre dezembro de 1960 e fevereiro de 1961, fazendo com que a área de várzea do rio ficasse inundada. Os moradores foram retirados em sua totalidade e realocados em um conjunto habitacional no Jabaquara, no que foi durante anos um modelo de sucesso de desfavelamento na cidade”. Disponível em: <http://br.blastingnews.com/sao-paulo/2015/11/cinco-lugares-em-sao-paulo-que-eram-favela-e-voce-nem-imaginava-00637245.html >. Acesso em: 9-9-2017.

[5] Esse número varia, as fontes são diversas. Essa contagem partiu de informações retiradas da obra de Lenine e Meihy (2015).

[6] Resenha de Mário Augusto Medeiros da Silva (2014) sobre a obra de Reyes, Alejandro – Vozes dos porões (2013).

[7]Trata-se de um problema social, pois tais moradias constituem-se a partir das contradições econômicas, históricas e sociais, o que resulta na formação de casas sem planejamento mínimo, oriunda s de invasões e ocupações irregulares.

[8] Conceitos que serão desenvolvidos mais à frente.

[9] Lélia Gonzalez, ao se referir ao lixo que fala: aos negros, pobres e favelados, Racismo e sexismo na cultura brasileira, In: Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p.223-244.

[10] Aqui refiro-me as vozes de mulheres outras que partem dos mesmos espaços e condições de Carolina de Jesus.

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