L’Etudiant Noir: a importância da revista na construção da identidade negra na França

Fonte: BNF

A partir do começo do século XX surgiram diversos movimentos artísticos e literários que modificaram o cenário cultural mundial.  Nesse processo, a legitimação de uma identidade negra e de sua expressão cultural se dava por meio de performances e narrativas que propunham desconstruir os padrões e modelos sociais pré-estabelecidos pelo eurocentrismo.

Willlian E. B. Du Bois[1], ao publicar As Almas da Gente Negra (1903), exerceu forte influência sobre os intelectuais negros de diversas partes do mundo, promovendo a exaltação dos valores e das tradições da África Negra por meio da consciência de seu lugar na sociedade. O autor concentra a atenção nas questões em torno da segregação e da busca pela cidadania do negro norte-americano.

O livro de Du Bois levanta importantes pontos das lutas políticas, sociais e culturais tais como o direito ao voto, a educação em todos os níveis inclusive no ensino universitário, a rejeição e o fim da segregação entre outros. A imagem estereotipada apresentava o negro como figura exótica e grotesca, portanto, a valorização da cultura seria uma forma de emancipação, pois traria a possibilidade de desenvolver as potencialidades do negro resultando na libertação.

O pan-africanismo[2] traz como principal argumento uma unidade entre os negros do mundo, principalmente americanos, africanos e caribenhos tendo como base a luta contra o imperialismo. Para Du Bois, os valores culturais são os principais atributos de afirmação da identidade.

 O Cultivo da identidade negra construída cultural e politicamente como expressão de uma solidariedade racial total baseada não só em uma experiência social comum, mas também em um sentimento espiritual comum, veio para dominar a literatura negro-americana (IRELE, 1965 apud DURÃO, 2011, p.35).

A partir dos pensamentos de Du Bois[3] foi-se construindo as bases para a o movimento do Renascimento do Harlem[4]. A partir dos anos de 1920 nos Estados Unidos e na Europa, principalmente em Paris[5], já se tem produções literárias e artísticas que apresentam traços de uma humanidade do negro a diferenciando do pensamento até então proposto pela sociedade. Esse movimento cultural e literário vai reunir diferentes formas de expressão literária e artística como o Jazz, o Blues, o Charleston[6], o teatro e a literatura buscando romper com os padrões através da reavaliação e recolocação do negro na sociedade. Em 23 de junho de 1926, em um artigo publicado na revista The Nation, é destacado um trecho do manifesto do movimento que declara a libertação artística do negro:

Nós, criadores da nova geração negra, queremos exprimir nossa personalidade sem vergonha nem medo. Se isso agrada os brancos, ficamos felizes. Se não, pouco importa. Sabemos que somos bonitos. E feios também. O tantã chora. O tantã ri. Se isso agrada à gente de cor, ficamos felizes. Se não, tanto faz. É para o amanhã que construímos nossos sólidos templos, pois sabemos edificá-los, e estamos erguidos no topo da montanha, livres dentro de nós (MUNANGA, 2009, p.47).

Nos espaços criados pelo Renascimento do Harlem[7], os negros norte-americanos puderam expressar seu pensamento e sua insatisfação protegidos da repressão e da violência. Enquanto isso, W.E.B. Du Bois organizava congressos que discutem a situação dos negros nas colônias francesas da África, do Caribe e das Antilhas reunindo intelectuais dessas regiões que estavam estudando nas metrópoles. A partir do momento em que os estudantes das colônias começaram a estudar nas universidades europeias, começaram a serem repensados os processos de assimilação e organização política e social dos países colonizados.

Através desses novos olhares surgiram temáticas como a relação entre o passado e o presente, a ancestralidade, a representação das tradições e seus conflitos com a modernidade, a oralidade, as diversas línguas do continente, a escrita na língua do(s) colonizador(es) e as culturas africanas que convivem em um mesmo território entre outras.

Na década de 1930, surgiram diversos periódicos que tinham a intenção de destacar os negros no mundo.  A primeira delas chamada La Revue du monde noir[8] (1931) criada e financiada pelas irmãs martinicanas Jane, Andrée e Paullete Nardal, teve apenas seis edições publicadas, entretanto a maior contribuição da família Nadal foram os encontros em seu “salão literário” que buscava reunir os intelectuais residentes em Paris o objetivo de propor discussões e de fazer circular as obras dos escritores negros das origens mais diversas. Leopold Sedar Senghor destaca: “É nos anos 1929-1934 que nós estivemos em contato com os negro-americanos pelo intermédio da senhorita Andrée Nardal (…). Ela tinha um salão literário onde negro africanos, antilhanos e negro americanos se encontravam.”[9]

Em 1932, por iniciativa de estudantes antilhanos Etienne Léro, Maurice Sabat-Quitman, Jules Monnerot, et René Ménil., é publicado o único número da revista Legitime Défense[10].  No plano político-cultural, a publicação pretendia denunciar as atrocidades do colonialismo e ressaltar a cultura crioula. Já no plano literário, ela pretendia dar voz aos poetas negros da renascença por meio de recursos surrealistas.

Já em 1934, surge a revista L’Étudiant Noir[11] que além dos ideais propostos pelas outras publicações, mostrava que para haver libertação era necessário uma volta às raízes e as culturas africanas por meio da libertação dos modelos ocidentais propondo uma renovação artística por meio da consciência negra no plano ideológico quanto no plano conceitual.

Criada pelo martiniquense Aimé Césaire, o senegalês Leopold Sedar Senghor[12] e Guienense Léon-Gontran Damas[13], serviu como principal veículo de divulgação do movimento da Negritude. Na primeira edição da revista, Léon Damas anuncia: “Não somos mais estudantes martinicanos, senegaleses ou malgaches, somos cada um de nós e todos nós, um estudante negro”. Estava aí apresentação da revista e também dos ideais dos estudantes: unir os negros de todos os continentes e lutar por seus direitos. Logo, esses intelectuais iam na contramão das políticas de assimilação propostas pelos países dominadores aos estudantes das colônias na Europa.

L’Étudiant Noir tinha como subtítulo “Jornal mensal da associação dos estudantes martinicanos na França”[14] além da circulação do periódico também organizava exposições e eventos acadêmicos.  Nas três edições existentes, a revista era dividida em três partes: “questões corporativas” em que eram apresentados textos de cunho político e informativo; “os ideais e as letras” espaço reservado à produção literária e aos manifestos e por últimos “assuntos diversos” como música, humanismo, artes e questões estudantis. Na terceira edição, “os ideais e as letras” foram separados dividindo-a em quatro partes.

Segundo Lilyan Kesteloot[16], a primeira edição apresentava um importante artigo de Aimé Césaire intitulado “Negreries – Jeunesse Noir et assimilation[17]” que abordava o problema da assimilação francesa e a urgência de se ter a emancipação das colônias por meio de um conceito de consciência racial. Nas palavras de Césaire, “Se a assimilação não é loucura, é tolice, pois querer ser assimilado é esquecer que ninguém pode mudar a fauna, é ignorar a alteridade que é a lei da natureza.[18]. O autor, aos 22 anos, também critica as gerações anteriores pela não tomada de decisões perante essa situação:

[…] a juventude negra vira as costas para a tribo dos mais velhos. A tribo dos mais velhos disse: ‘Assimilação’, nós respondemos: ‘ressurreição!’, os jovens negros de hoje não querem nem a  escravização, nem a assimilação, eles querem a emancipação[…] Querem ter seus poetas, seus romancistas que dirão a sua grandeza, ela [a emancipação] contribuirá para a vida universal, para a humanização da humanidade[…][19]

No entanto, é na terceira edição que Césaire, apresenta o artigo “Consciência racial e revolução social” em que exprimirá pela primeira vez a palavra “negritude”, neologismo criado por Césaire, dará origem ao movimento e esteve presente em grande parte de sua produção literária. Nas palavras do autor: “A negritude é o simples reconhecimento do fato de ser negra, a aceitação do nosso destino negro, da nossa história e da nossa cultura”. Sabe-se também que “o texto de Birago Diop chamado “Contes D‟Amadou Komba” e o “Cahier d‟um Retour aux pays natal” de Aimé Césaire foram primeiramente publicados em fascículos no periódico antes de serem expandidos pelos próprios autores” (Durão, 2011, p.115).

O Movimento da Negritude vem se consolidar não apenas como o surgimento de uma intelectualidade negra, mas também como um momento histórico de transformação do pensamento que a partir de uma lógica imperialista excluiu os povos, principalmente africanos, os colocando à margem da história do Ocidente. As modificações trazidas pelas produções literárias nesse contexto abriram caminhos para que novas vozes conquistassem o lugar que até então pertencia a Outro.

Para compreender melhor o Movimento da Negritude é necessário fazer uma diferenciação da negritude como conceito e como um movimento filosófico-literário ocorrido no entre guerras. Nas palavras do professor senegalês Alain Pascal Kaly (2007), ressalta o pensamento de Léopold Senghor a respeito do surgimento da Negritude:

O movimento da Negritude é a manifestação de um basta, como diria Senghor, de uma recusa à assimilação e à sequência no uso de roupas emprestadas segundo o mesmo Senghor. […] Logo, a civilização do mundo ocidental não seria a única detentora da verdade, tampouco de valores humanos, pois o que foi construído por uma civilização acaba sempre sendo uma ditadura cultural capaz de cometer as maiores barbaridades conta outros povos (KALY, 2007, p. 100).

Assim, a revista L’Etudiant Noir foi o ponto chave para formação desse movimento, sendo um importante  veiculo de reivindicação da condição do negro perante o sistema colonial. Aimé Césaire pergunta: Quem somos nós? Europeus? Africanos? Se pode ser africano e universal?. Esses questionamentos que vão ser levantados através das publicações da revistas vão influenciar diversos movimentos culturais e sociais vão surgir na África, na Europa e nas Américas partindo dos mesmos ideais. As publicações negras produzidas em Paris no começo do século XX foram para estes escritores nos primeiros momentos da Negritude pudessem através da riqueza de seus os estilos propagar a busca pela igualdade e a pela liberdade dos negros no mundo.

Referências:

Césaire, Aimé. Senghor, Léopold Sédar. Damas, Léon-Gontran. L’Etudiant noir. Paris, mars 1935. http://efgwrites.com/2014/05/letudiant-noir/ Acesso em: 25.09.2016

Chanda, Tirthankar. Aimé Césaire et le mouvement de la Négritude. Revue RFI Afrique. Publié le 26-06-2013. http://www.rfi.fr/afrique/20130626-aime-cesaire-centenaire-mouvement-negritude Acesso em: 25.09.2016.

Durão, Gustavo de Andrade. A construção da negritude: a formação da identidade do intelectual através da experiência de Léopold Sédar Senghor (1920- 1945) . Dissertação de mestrado. Campinas, SP: [s. n.], 2011.

GATES Jr., Henry Louis. Os negros na América Latina.São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

KALY, Alain P. O inesquecível século XX: as lutas dos negro-africanos pela sua humanidade. In: MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.

SILVA, Josué Pereira (Org.). Por uma Sociologia do século XX. São Paulo: Anna Blume, 2007. p. 100.

Aimé Césaire et Le mouvement de la négritude. http://www.assemblee-nationale.fr/histoire/aime-cesaire/negritude.asp Acesso em: 24.09.2016.

Notas:

[1] William Edward Burghardt Du Bois nasceu em 1868 em Massachusetts e morreu em Gana aos 95 anos, em 1963. Du Bois foi o organizador dos cincos primeiros Congressos Pan-africanos: Paris (1919); Londres (1921); Londres-Lisboa (1923); Nova York (1927) e o de Manchester (1945). “O primeiro Congresso Pan-africano ocorrido em 1919 em Paris, que reuniu cinquenta e sete delegados das Antilhas, da África e dos Estados Unidos sobre a presidência do deputado senegalês Blaise Diagne e que contou com a organização do professor, historiador e sociólogo W.E.B. DuBois. O congresso foi um estímulo positivo para os intelectuais, porque reivindicou a proteção para os descendentes de africanos, aos direitos da terra, à educação e ao trabalho e exigiu o fim dos castigos corporais nas colônias.” Durão, 2011, p.40.

[2] O termo Pan-africanismo foi cunhado pela primeira vez por Sylvester Willians, advogado negro de Trinidad, por ocasião de uma conferência de intelectuais negros realizada em Londres, em 1900. Willians levantava sua voz contra a expropriação das terras dos negros sul-africanos pelos europeus e conclamava o direito dos negros à sua própria personalidade.

[3] Além de Du Bois, outros escritores fizeram parte da construção do pensamento pan-africanista como, por exemplo: Marcus Garvey, de origem caribenha, favorável a um retorno dos negros à África, para o que organizou uma companhia de navegação e, utilizando-se de um discurso extremamente populista, conseguiu com seu grande carisma arregimentar multidões de negros.

[4] O Renascimento no Harlem ocorreu entre 1920 e 1940 nos Estados Unidos.

[5] A partir dos encontros dos estudantes franceses, antilhanos, africanos e a criação de revistas, eventos e publicações que divulgavam esses movimentos negros.

[6]Estilo de dança nascida na cidade de Charleston  no estado da Carolina do Sul, Estados Unidos. Apresenta semelhanças com algumas dança de Trinidad, Nigéria e Ghana. Chegou a converter-se em moda popular a raiz de sua apresentação no musical negro Runnin’ Wild (1923), e teve uma grande difusão na Europa após a I Guerra Mundial.

[7]“Havia um relacionamento complexo entre escritores e críticos negros do Renascimento do Harlem, sobretudo Langston Hughes, que morou ao todo um ano e meio com o pai no México e traduziu obras de escritores caribenhos, como Nicolás Guillén e Jacques Roumain.[…] Como modeles a seguir, Hughes e seus companheiros, criadores do Renascimento do Harlem, foram fundamentais para Aimé Césaire e Leopold Senghor, fundadores do movimento da Negritude em Paris. Ambos os movimentos sofreram influência direta do trabalho pioneiro de Jean Price-Mars (GATES Jr., 2014, p.24-25).

[8] A revista do mundo negro (Tradução nossa).

[9] Durão, 2011, p.107.

[10] Legítima Defesa. (Tradução nossa).

[11] O Estudante Negro. (Tradução nossa).

[12]“Senghor pode ser considerado um dos maiores ícones da língua e cultura franco africanas da atualidade, sendo considerado o principal idealizador da Francofonia” (DURÃO, 2011, p.14).

[13] Léon-Gontran Damas foi um escritor, poeta e político francês, nascido a 28 de março de 1912 na Guiana Francesa e falecido a 22 de janeiro de 1978 nos Estados Unidos.

[14] Título origirnal: Journal mensuel de l’association des étudiants martiniquais en France

[15]Aimé Césaire et Le mouvement de la négritude. http://www.assemblee-nationale.fr/histoire/aime-cesaire/negritude.asp Acesso em: 24.09.2016

[16] Kesteloot, apud Durão, 2011, p.115.

[17] Negrarias – Juventude Negra e Assimilação. (Tradução nossa).

[18] Césaire,1935. (Tradução nossa).

[19] Césaire,1935. (Tradução nossa).

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