Foto by Fernando Flesch
Diferente de outras modalidades de dança, sapateador dialoga com a música ao fundo recriando-a e reinterpretando-a, ou seja, ele pode seguir a música e complementá-la.
Segundo Harper (2000) é preciso “conhecer a música escolhida ao fundo, sua métrica, frases musicais, grupos de compassos, momentos altos, momentos de respiração e dinâmica geral” (HARPER, 2000, p.6). Logo, o sapateador possui um conhecimento, mesmo que básico, de teoria musical para que sua composição coreográfica tenha êxito. Marchina (1988) destaca:
A música dá o compasso, os pés dão o padrão rítmico e o corpo cria a melodia. Essa integração faz do sapateador, antes de mais nada, um músico pelo domínio rítmico, que é indispensável na arte de sapatear. A melodia está intimamente ligada à arte de se dançar. Portanto, quanto maior a expressão do corpo, melhor é o desempenho do sapateador que explorará, com o domínio e técnica, as formas de movimento (MARCHINA, 1988, p.22).
É importante ressaltar que a produção de sons se dá não apenas por meio dos movimentos dos pés, o corpo inteiro se torna um instrumento percussivo para a composição musical. A cabeça e os braços auxiliam no equilíbrio, o tronco e os quadris dão o suporte para a impulsão e agilidade das pernas, os pés soltos realizam movimentos precisos que alternam sons e silêncios.
O que conhecemos hoje como sapateado americano ou tap dance hoje é a fusão entre três estilos de dança. O Clog é uma dança folclórica das Ilhas Britânicas em que se utilizam tamancos de madeira para a produção de sons por meio de batidas dos pés. Com a postura ereta, o movimento das pernas acontece dos joelhos para baixo.
A partir da Revolução Industrial, os sapatos confeccionados em madeira foram sendo substituídos por modelos feitos de couro que “proporcionou maior mobilidade, rapidez, e leveza aos bailarinos, além de tornar os sons produzidos mais claros e suaves. Essa mudança na confecção dos sapatos foi crucial para o desenvolvimento da técnica” (KARNAS, 2014, p.16). Por volta de 1910, foi adotado o sapato com plaquinhas de metal afixadas por parafusos em solas de couro, chegando assim mais próximo do formato que conhecemos hoje.
As músicas e danças dos escravizados africanos são consideradas a espinha dorsal do sapateado americano (KARNAS, 2014). Nesses ritmos, o corpo é relaxado e leve, o tronco faz movimentos de balanço permitindo que o peso se distribua entre as pernas. Seibert (2015) nos traz relatos a respeito da performance de escravizados africanos:
“Os europeus identificaram padrões: uma “pergunta e resposta” entre artistas e espectadores, diluindo a distinção entre os mesmos; o arranjo de dançarinos sem um círculo, com indivíduos se alternando no centro e aqueles no círculo batendo palmas no tempo. ‘Com joelhos tortos e corpo dobrado e pés rápidos’ Jobson escreveu sobre dançarino Senegambiano em 1620, percebendo o que poderia ser chamado de posição padrão da dança do Oeste africano: joelhos dobrados, torso inclinado para a frente, bumbum para fora” . (SEIBERT, 2015, s/p)
O improviso, a dança em circulo e os passos que desafiavam outros dançarinos dando a característica de “pergunta e resposta” faziam parte das performances desses escravizados. O ato de improvisar é considerado hoje como base do sapateado, pois além de desenvolver a criatividade, é a prática utilizada nos duelos de sapateadores e na Jam Session (Performances em que os sapateadores improvisam ao som de música ao vivo).
Como já havíamos destacado anteriormente, as danças africanas deram bases para o surgimento do sapateado. Conhecida nas Américas como Ring Shout foi uma dança ligada as cerimônias religiosas dos escravizados. Derivada da African Circle Dance, uma das danças africanas mais significativas, influenciou também a música norte-americana.
Na Ring Shout, os participantes dançam sempre em círculos, por isso o nome ring (anel em inglês). Com o surgimento de leis que proibiram danças religiosas e instrumentos musicais de percussão utilizados pelos escravizados nos Estados Unidos, diversas danças desapareceram e os tambores foram dando lugar ao bater das palmas das mãos e os pés no chão juntamente com cantos.
A Ring Shout ocorria, geralmente, após o culto nas igrejas e também no final do dia nos campos. Os escravizados se reuniam para dançar, cantar e louvar seus deuses. Não havia um tempo de duração pré-determinado, porém há relatos de que as práticas terminavam quando o espírito de um antepassado era sentido. Os participantes da ring se deslocavam no círculo, geralmente no sentido anti-horário, com o corpo em “congo pose”, isto é, inclinado para frente e joelhos flexionados. De acordo com a música, os quadris balançam em meio a passos que batem os calcanhares no chão. Cada participante, ocasionalmente, entra no centro do círculo e dança livremente.
A Juba, outro ritmo largamente citado como formador do sapateado, foi um estilo de dança predominante no Haiti. Ligada a diversos eventos importantes da vida como batismo e nascimento, a Juba também era uma dança religiosa para homenagear os ancestrais e afastar espíritos ruins. Considerada uma afirmação positiva da vida, pois a força colocada nos movimentos tinha o poder de curar e dar vitalidade.
A dança foi levada para os Estados Unidos por grupos de escravizados de cultura ioruba, possivelmente, oriundos do Benin, Haiti, Nigéria e Togo. Há mais de uma grafia para a palavra Juba: Giouba, Djouba e Djumba. Logo,
Djouba é uma dança da nação de Djumba. Estes são espírito da terra e agricultores. O azul é a cor das pessoas djouba. O balanço sutil dos quadris em Djouba mostra o flerte elegante de homens e mulheres camponeses. Kouzin, deus da agricultura e protetor das montanhas, é honrado nesta dança.
Mesmo sendo descritas por diversos teóricos como os ritmos que deram origem ao sapateado nos Estados Unidos, ainda se sabe muito pouco sobre essa contribuição:
O que podemos saber da dança que os africanos provavelmente trouxeram com eles e assim contribuíram para o sapateado? Se as tribos do Oeste e do centro da África, de onde os escravizados foram retirados, deixaram registros escritos sobre a sua dança, os pesquisadores ocidentais ainda não descobriram; parece que a dança, assim como a música e as histórias, era o registro. O único registro escrito do qual se tem conhecimento é de Olaudah Equiano, um escravo que comprou sua liberdade e que, na sua autobiografia de 1789, disse que na sua infância Igbo a dança era parte de toda ocasião, traduzindo histórias e eventos em movimentos variados. (SEIBERT, 2015, s/p)
O que se sabe é que em algumas cidades dos Estados Unidos “os negros e os imigrantes conviviam nas cervejarias e salões de baile de Nova Iorque, possibilitando a mistura do Jig, do Clog e da dança africana. (KARNAS, 2014, p. 16). A Juba e a Ring Shouts eram realizadas de pés descalços, entretanto com a estruturação do sapateado como dança passou a se utilizar os sapatos de Clog. Harper (2015) destaca a relação do sapateado com outras danças:
O sapateado americano integra a família do Jazz dance de raiz. Sua característica, além da movimentação corporal, é o uso dos pés como instrumento de percussão. Encontra-se no terreno artístico que reúne dança e música, podendo dar ênfase a um ou ao outro. Tem origem nas danças populares levadas para os Estados Unidos pelos imigrantes europeus e escravos africanos, no embate deles em solo americano, somado a influências de diversas modalidades de dança. É uma arte em constante evolução, que ganhou sotaques diferenciados com sua expansão por outros países e continentes, inclusive no Brasil, onde se firmou desde os anos 80 (HARPER, 2015, p. 25-26).
Essa nova dança, surgiu em meados do século XIX e se popularizou nos conhecidos Show dos Menestréis. Devido à segregação racial escancaradamente presente na época, dançarinos brancos e negros não apareciam nos palcos juntos, exceto William Henry Lane, também conhecido como Master Juba. Juba, conhecido por ser percussivo, musical e rápido, foi dos primeiros dançarinos negros a dançar junto de dançarinos brancos para plateias brancas.
Em 1842, o grande romancista inglês Charles Dickens realizou uma turnê pelos Estados Unidos e escreveu um livro sobre o assunto chamado American Notes. Ele descreveu a visita a Almack’s, um salão de dança no notório Five Points de Manhattan, e um dançarino chamado Master Juba:
O corpulento violonista negro, e seu amigo que toca o pandeiro, batem com a tábua da pequena orquestra em que se sentam e tocam uma métrica viva. Cinco ou seis casais vêm ao chão, comandados por um jovem negro animado, quem é a inteligência da assembléia e o maior dançarino conhecido.
Em 1845, Juba foi o primeiro dançarino negro a receber um faturamento maior que um branco em um Show de Menestréis. Master Juba competiu em várias disputas e derrotou todos os adversários, incluindo um irlandês chamado Jack Diamond (É possível encontrar registros de seu nome como: John ou Johnny Diamond), considerado o melhor dançarino branco da época. Juba e Diamond percorreram os Estados Unidos em uma série de apresentações que encenavam um duelo de sapateado.
Já no começo do século XX, Mais ou menos nesta mesma época os circuitos de Vaudeville surgem, tomando o lugar do Show dos Menestréis. O Vaudeville era também uma forma de entretenimento próxima a um show de variedades. Era comum ver números de acrobacias, canto, dança e comédia.
Nesta época, dois nomes importantes de sapateadores ganham destaque: John Bubbles e Bill “Bojangles” Robinson. John Bubbles foi um dos nomes de destaque do “Theater Owners Booking Association” (T.O.B.A.), o local onde acontecia o circuito de Vaudeville mais famoso de artistas negros.
O que tornou Bubbles um dos grandes nomes do sapateado foi a utilização significativa dos calcanhares e a criação de uma diferente acentuação sincopada (trata-se de um deslocamento da acentuação rítmica, trazendo os sons mais fortes para tempos mais fracos dentro da música.) às linhas rítmicas até então trabalhadas, o que o tornou semelhante a um baterista. Por este motivo, ele é considerado o pai do “RhythmTap”, que ganhou destaque nos anos seguintes.
Antes de Bubbles, os sapateadores sapateavam em cima das pontas dos seus pés, tirando proveito de passos rápidos e dançando nitidamente em frases “dobradas*”. Bubbles carregou o seu compasso, soltou seus calcanhares e executou acentos e síncopes incomuns, abrindo a porta da percussão moderna do jazz. “Eu queria torna-lo mais complicado, então eu coloquei mais passos e mudei o ritmo”, disse Bubbles sobre o seu estilo, que o preparou para o novo som do bebop nos anos 50 e antecipou as melodias prolongadas do “Cool Jazz” nos anos 50.
Bill “Bojangles” Robinson era considerado o melhor sapateador da época, presente tanto nos palcos quanto, futuramente, nos filmes. De estilo gracioso, Bojangles tinha um sapateado limpo (sons bem executados), dançando sempre nas pontas dos pés. Observa-se isso claramente no posterior filme “The Little Colonel” (1935), onde contracenou com Shirley Temple na popular cena da escada.
Tal cena foi tão marcante por um elevado nível de excelência que até hoje Bojangles é reconhecido pela mesma e sua atuação foi tão significativa na história do sapateado que a data de seu aniversário, dia 25 de maio, é considerada o Dia Internacional do Sapateado.
Em 1927, é lançado o primeiro filme sonoro de Hollyywood: “The Jazz Singer”, começando assim a era de ouro da Broadway. Na década de 1930, o Vaudeville desaparece e dá lugar ao cinema e a Hollywood. Ao mesmo tempo, surge o chamado Flash Tap: a fusão do sapateado com passos acrobáticos, mortais, saltos em plataformas dentre outros movimentos espetaculares, impressionantes e até perigosos.
Os Nicholas Brothers (Fayard Nicholas e Harold Nicholas) foram os grandes nomes destaque deste estilo de dança, registrado em grandes shows e filmes.Os irmãos Nicholas constituíram a mais forte e significante dupla de sapateadores da história do showbusiness. Cresceram na Philadelphia, onde seus pais tocaram na orquestra do “Standard Theatre”, uma casa de Vaudeville para negros. Desde cedo, estiveram presentes nesses circuitos e foram presença marcante no Cotton Club no Harlem. A dupla marcou presença em muitos filmes importantes como: “My American Wife” (1936), “Tin Pan Alley” (1940) e “StormyWeather” (1943). Ambos continuaram trabalhando com o sapateado por mais de 60 anos e receberam diversos prêmios.
Texto na íntegra disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/200494
Referências:
Dorris, George. International Encyclopedia of Dance: A Project of Dance Perspectives Foundation, Inc., founding editor, Selma Jeanne Cohen; area editors, New York: Oxford University Press, 1998.
HARPER, Steven. Profissão bailarino: raio x de uma paixão. Rio de Janeiro: Sindicado dos Profissionais da Dança do Estado do Rio de Janeiro, 2015.
_______________. Noções básicas de ritmo e de música para o sapateador. Joinville, 2000.
KARNAS, Luíza Silveira. A Poética no sapateado americano: Um estudo sobre o processo coreográfico na perspectiva do criador. Trabalho de conclusão de curso de Licenciatura em Dança da Universidade do Rio Grande do Sul, 2014.
MARCHINA, Método. Sapateado americano: curso para professores. Rio de Janeiro, 1988.
OGANDO, Suellen. O que é o teatro musical: uma pespectiva da história do Teatro Musical, origens, influências, Broadway, West End e Brasil. São Paulo: Giostri Editora LTDA, 2016.
PEREIRA, Débora. Perfil dos professores de sapateado em Porto Alegre. Trabalho de conclusão do curso de especialização em Dança da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2006.
SEIBERT, Brian. What the Eye Hears: A history of Tap Dancing. New York: Farrar, Straus and Giroux, 2015. Versão Kindle.Nova Enciclopédia Barsa. – São Paulo: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações, 2000. Volume 14. Vários colaboradores. Obra em 18 v. p. 315