Milonga – por Carla Mello

O termo milonga é amplamente conhecido na América do Sul e adquiriu diversos significados ao longo dos tempos, desde o período colonial. A milonga possui reminiscências de um ritmo narrativo-musical que veio das culturas orais africanas com os escravos para a região do Rio da Prata, esta abrangendo a Argentina, o Uruguai e atingindo o sul do Brasil por questões geopolíticas e culturais que ligam esses países a partir da economia colonial e escravista até as lutas de independência.

Vicenti Rossi, em seu livro “Cosas de Negros” (1958), faz um resgate dos primórdios da inserção dos negros nas culturas argentina e uruguaia, remontando aos payadores e mostrando que la payada (cantoria) é conhecida como um tipo de poesia oral espontânea, que não se escreve: se sente. Esse é um vestígio da tradição oral de contar histórias e fazer cantorias ao redor das fogueiras que marcam diferentes identidades locais do Rio da Prata. Segundo o autor, cujas pesquisas datam do início do século XX, todo o contexto histórico, político e cultural transitava oralmente na sociedade  prtaense daqueles anos. No entanto, o payador (o mais popular dos cantores) foi se transformando em milongueiro e a milonga consolidou-se como a música do povo. A milonga guarda da payada a improvisação que se perpetua nela como arte da memória popular.  Posteriormente, o improviso e a forma de desafio, fizeram-na ser conhecida também como canto de contraponto.

O termo milonga foi adquirindo também diversas ramificações de significados para identificar desde a música e a poesia oral (significado mais antigo)  até os lugares onde reuniões de bailes aconteciam (significado adquirido no século XIX). Vicenti Rossi ainda cita que no Brasil, por exemplo, o termo milonga também adquiriu diferentes conotações, mas ainda vale registrar que ele pontua a origem como sendo “africano-brasileira”:

[…] su orijen es africano-brasileiro. Los negros angolas fueron los que em mayor numero se importaron al Brasil, y los únicos en Sud-América que lograron formarse un lenguaje, con reminiscencias africanas y adaptación del que hablaban sus parientes e introductores los moro-lusitanos. A ese lenguaje se le llamó ´bunda´, y al de todos los negros por antonomasia, porque decir ´bunda´ equivale a ´bozal´ (…).´Milonga´ es término bunda y significa ´palavras, ´palabrerío´, ´cuestion´.(ROSSI, 1958, p.116)

Outra questão que Rossi relembra é a importância que tiveram os portos marítimos para transmitir essas culturas populares de um lugar para o outro, pois através dos marinheiros negros que frequentavam as festas e as casas “de las chinas”, percorria essa tradição popular da música e dança, afirmando que “se presentó la Danza Cubana em el Plata a mediados dels siglo passado. Surjió la Milonga unos diez años despues, imponiéndose paulatinamente hás estos momentos, y por muchos años mas, con toda seguridad.”(ROSSI, op.cit.p.128)

Câmara Cascudo (2002) também segue nesta linha ao descrever em “Made in África” as diferentes significações que a palavra milonga foi adquirindo ao longo dos anos, desde sua origem como plural de mulonga, etimologicamente vocábulo de origem bunda. Perpassa pelo sentido de que é uma disputa de palavras usada pelos negros oralmente, inclusive mostra que em Angola havia a praça destinada a julgamentos e decisões processuais, deduzindo-se daí que o “Di-kanga dia milonga — pátio das questões” era onde os negros proferiam “o palavreado antecedente e consequente ao formalismo judicial.” O autor discute também a ressignificação brasileira do verbete milonga de palavrada para “chiste, pilhéria espirituosa, graça envolvedora. Sempre intencional”; ou seja, a milonga e sua adjetivação como “astúcia, manha” mostra que “A imagem disputadora e brigona da milonga angolana desapareceu [sic]”.

Os estudos teóricos de Vicente Rossi (1958) e Câmara Cascudo (2002) foram cruciais para o entendimento dos diversos significados que “milonga” possui, suas correlações com a dança e o processo de transferência de saberes a partir dos marinheiros negros que estiveram no Brasil e Rio da Prata, desde suas frequentes visitas às casas das “chinas” até os bairros portuários que faziam festas e bailes de milongas.

Percebemos que o assunto ainda é pouco mencionado em estudos musicais do gênero milonga e as conexões com a África passam despercebidas neste cenário. Mas é nossa intenção propagar que a milonga é uma marca diaspórica africana na cultura popular de países como Brasil, Argentina e Uruguai – fazendo o resgate de um detalhe importante que permitirá outros olhares para tais culturas. A partir da leitura de “Atlântico negro — modernidade e dupla consciência”, Paul Gilroy (2001) faz um retrospecto da cultura africana na Inglaterra e nos Estados Unidos, retomando discussões extremamente pertinentes para pensarmos esse processo diaspórico ocorrido também na América do Sul; principalmente entrelaçando a importância que Rossi já dava aos marinheiros e esse sentido metafórico empregado por Gilroy: o de se pensar o espaço do mar Atlântico como um lugar de trocas transnacionais e fluxo de culturas.

Narrando as histórias de personalidades negras que se destacaram, principalmente pela música, o autor vem reivindicar que esse espaço reconheça a influência negra no processo de legitimação e formação cultural dos povos, buscando a dupla consciência e tentando não cair em termos como essencialismo e pluralismo distorcido:

Devido ao fato de que a auto-identidade, a cultura política e a estética fundamentadas que distinguem as comunidades negras, foram frequentemente construídas por meio de sua música e pelos significados culturais e filosóficos mais amplos que fluem de sua produção, circulação e consumo, a música é particularmente importante na ruptura da inércia que surge na infeliz oposição polar entre um essencialismo enjoativo e um pluralismo cético e saturnal que torna literalmente impensável o mundo impuro da política. (GILROY, op. cit., p.208)

Gilroy enfoca bastante criticamente questões políticas que tentam se fundamentar num nacionalismo exacerbado, bem como em questões étnicas que autoafirmam o processo de discriminação inverso. O autor defende a música negra como uma contracultura que nasce do popular para chegar ao erudito, por assim dizer, e ramificar diversos estilos musicais propagados até os dias atuais.

Mais informações sobre o termo podem ser encontrados a baixo no “veja também”, com um artigo exclusivo publicado pela Professora Dra. Susan de Oliveira e com a colaboração da bolsista de pesquisa PIBIC/CNPq Carla Mello:

Multimídia