Rap é compromisso, não é viagem

Foto de: Thibault Dandré

Os admiradores do rap sabem que o título desse breve texto tornou-se um hino do rap nacional desde que este conheceu seu autor, Sabotage, rapper assassinado em 2003 na cidade de São Paulo e até hoje conhecido como o grande mito do gênero poético-musical que é mais ouvido no mundo[1]. E sabem bem a potência que essas palavras significam para aquelas pessoas que participam dessa cena, direta ou indiretamente.

Mas muito antes de Sabotage, em meados da década de 1970, o rap nasce e toma forma nos guetos dos Estados Unidos, época em que muitos jamaicanos e latinos migravam para aquele país e também período da implantação da política neoliberal do governo à época. Nesse cenário, as festas de rua no bairro do Brooklin[2] eram embaladas por dança e música Negra, criando assim uma cultura que ainda hoje é ignorada e criminalizada por muitos, mas que continua a transformar vidas e se transmutar ao longo de todos esses anos!

Assim como nos Estados Unidos, aqui no Brasil o rap também surge embalado pelo ritmo do break – a dança de rua, no centro de São Paulo no início dos anos de 1980. Ambas, a música e a dança, fazem parte do Movimento Hip Hop, que também traz o grafite como a arte plástica dessa cultura[3]. Seguindo a linha de SP, aqui na Ilha do Desterro o rap chega em 1988 no bairro Monte Cristo[4] e se espraia pela cidade através de seus bairros periféricos. Hoje o rap daqui se encontra fortalecido pelas batalhas de rima que ocorrem de Leste a Oeste, de Norte a Sul na capital catarinense. Inclusive, essas batalhas sofreram e sofrem forte criminalização, como ocorre com a Batalha da Alfândega[5], ou ainda, a criminalização como vemos em alguns shows de rap censurados na cidade, como o episódio recente do grupo “Facção Central”[6] em 2015.

A sigla RAP vem do inglês “rhytm and poetry”, que traduzido significa “ritmo e poesia”. Por aqui, essa sigla ganhou diferentes “traduções”, como “Revolução Através das Palavras”, “Resgate das Almas Perdidas”, “Rap Atitude e Protesto”, entre outros. O fato é que esse gênero poético-musical traz consigo a história de povos oprimidos e marginalizados pelo “sistema”, esse monstro gigante que com seus tentáculos nos atinge direta ou indiretamente, seja através da falta de um atendimento médico no postinho do bairro, seja através da falta de representatividade na defensoria pública, seja através da discriminação por não conseguir um emprego pela cor da pele, ou ainda por ganhar menos na mesma função por ser mulher, seja pela violência do Estado propagada pela polícia e pelas injustiças que se acumulam no sistema judiciário e penal de nosso país.

O rap é um discurso plural que até hoje expressa de forma eficaz a voz dos oprimidos, a poesia dos guetos, dos becos e vielas que convoca à reflexão desse mundo “real” e desigual! Atualmente, encontramos esse ritmo fazendo parte, inclusive, de trilhas sonoras de novelas e, embora isso seja um fato ainda polêmico dentro do movimento, vale destacar a importância da visibilidade que o rap conquistou, ou seja, já não é mais possível abafar ou tentar esconder a voz das periferias! Vale destacar que o rap ainda carrega a “marca” dessas periferias, com artistas engajados que levam seus bairros para onde quer que vão. E inúmeros artistas ainda surgirão inspirados por um Racionais MC´s – grupo de maior destaque do gênero até os dias atuais – ou por um Arma-Zen – grupo de Florianópolis que atua desde 1999, que narra em seus poemas musicais a “Florianóia” que não se vende no discurso da “ilha da magia”[7].

O rap existe e resiste como fonte de esperanças para aquelas e aqueles que conhecem suas “verdades”, e se apresenta como fonte de conhecimento para aquelas e aqueles que não sabem como é viver em condições mínimas mas que, ainda assim, conseguem encontrar nas palavras rimadas e ritmadas dessa arte um pouco de aconchego com a “palavra-arma” do rap. Por isso, assim como nosso corpo precisa de água pra se hidratar e de comida para se alimentar, nossa alma precisa de arte pra “sobreviver no inferno” cotidiano desse “sistema” opressor, se hidratando e alimentando as faíscas de resistência que todos nós precisamos em tempos tão sombrios como o que vivemos hoje.

E nada melhor que a poesia através das palavras do rap para degustar um pouco desse lirismo contemporâneo que, por mais que seja muitas vezes recheado de “verdades intragáveis”, verdades estas gestadas no dia a dia do povo pobre, preto e periférico, ainda podem demonstrar esteticamente a arte do homem e da mulher que lutam pela dignidade da vida, as suas e a de seus próximos, e das gerações que estão por vir e que podem transformar o mundo em algo melhor do que temos hoje. Por isso, ouça um bom rap sempre que puder e ajude a propagar a cultura periférica e marginal de nosso país!

[1]     Conforme notícia publicada em 2015 pelo endereço eletrônico da Billboard Brasil, em matéria intitulada “Rap é o gênero mais ouvido no mundo, segundo Spotify”. Disponível em: http://www.billboard.com.br/noticias/rap-e-o-genero-mais-ouvido-do-mundo-segundo-spotify/.

[2]     Sobre a história do rap dos Estados Unidos, temos o documentário “Something from nothing – a arte do RAP”, do rapper Ice-T (2012). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=MxY_xksLUcc.

[3]     Para mais informações sobre o Movimento Hip Hop, há o documentário de Toni C. (2007) “É tudo nosso: o hip hop fazendo história”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fS0eNEoFwzs.

[4]     Documentário “Florianóia: ritmo e poesia na melhor capital do país”, de Giovanni Bello e Lucas Inácio (2013). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=NFUb0dHE4Ac.

[5]     Documentário “A causa é legítima: a batalha da Alfândega é o direito à cidade”, de Ricardo Pessetti (2016), Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=k2h0x72NdGQ.

[6]     Mais informações podem ser encontradas no documentário “Vozes caladas do rap: o show do Facção Central que não aconteceu em Floripa”, do coletivo MARUIM (2015. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=8PO5iFg5D74.

[7]     Videoclipe da música do grupo Arma-Zen (2015), “Florianóia”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=BFRh5FGFCmk.

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